O que o filme Parasita revela sobre os seis reinos do budismo

Parasita revela, sob a lente do budismo, os reinos do sofrimento humano. Um filme sobre apego, ilusão e a urgência da empatia.
O que o filme Parasita revela sobre os seis reinos do budismo
Foto: Divulgação

O filme Parasita — ganhador do Oscar de Melhor Filme em 2019 — é mais do que uma crítica social. Trata-se de um alerta do universo artístico, que antecipa um momento de introspecção profunda e cólera em relação aos valores da sociedade contemporânea.

A película vai além da denúncia das desigualdades. Ela representa realidades fenomênicas, intrínsecas à vida humana, discorrendo sobre relações, status, juízos, valores e paradigmas. Para ampliar o entendimento dessas questões, propomos uma análise do filme sob uma perspectiva budista. O que será que essa filosofia milenar pode nos revelar sobre a obra, a sociedade e o ser individual?

Cosmologia: os seis planos existenciais

Sem se prender a uma escola específica do budismo, podemos recorrer a raízes comuns dessa tradição, que compreendem o universo como um campo fenomenológico onde todos os seres estão interligados por um ciclo contínuo de transformação. A esse fluxo cíclico, a filosofia budista dá o nome de Samsara, representado pela imagem simbólica da Roda das Reencarnações.

Nesse contexto, cada ciclo não é apenas uma repetição, mas sim uma forma de existência, um plano, um “reino” onde uma alma pode se manifestar. A vida, segundo essa visão, não termina com a morte. Esta é apenas uma etapa de transição, na qual o renascimento se dá conforme a força acumulada do karma — positivo ou negativo — adquirido em vidas anteriores.

Assim, o karma determina onde e como uma alma irá renascer. Essa transição está ligada a estados mentais e emocionais específicos, que mantêm o ser preso a determinados níveis de sofrimento ou ignorância.

A cosmologia budista clássica divide a existência em seis reinos, dispostos do inferior ao superior:

  • Reino do Inferno

  • Reino dos Espíritos Famintos

  • Reino dos Animais

  • Reino dos Humanos

  • Reino dos Semi-Deuses

  • Reino dos Deuses

Cada um desses planos não deve ser compreendido apenas como realidades externas ou metafísicas. Pelo contrário, esses reinos são expressões simbólicas de estados psicológicos que podem ser vividos aqui e agora, por qualquer ser humano. Portanto, mais do que lugares de existência, eles representam camadas mentais e emocionais que moldam nossa percepção e condicionam nossas ações.

A pedra

“Min-hyuk… isso é tudo muito simbólico, não?”
Kim Ki-woo

Cada um desses planos existenciais não se manifesta apenas como uma realidade externa ou transcendente. Pelo contrário, sua essência é profundamente psicológica e simbólica. Esses reinos existem dentro da mente humana e se revelam por meio de nossos estados emocionais, padrões de pensamento e comportamentos.

Portanto, cada reino deve ser compreendido como uma metáfora viva, que reflete diferentes vibrações da mente às quais nos fixamos. Como o próprio Kim Ki-woo afirma em diversos momentos do filme, “é tudo muito simbólico”.

Contudo, o simbolismo não reduz a importância da realidade fenomênica. Pelo contrário, a reforça. O menor pensamento influencia a vida concreta e impacta o coletivo ao nosso redor. A mais sutil perspectiva pode alterar a totalidade de uma experiência.

A seguir, trazemos uma breve descrição dos seis reinos:

Reino dos seres do inferno

Neste plano, semelhante ao submundo da tradição cristã, os seres são consumidos pela raiva. O ódio gera mais ódio, perpetuando um ciclo sem fim. Não há acordos, nem trégua: apenas dor intensa, fome, sede, frio e medo constante.

A agressão se torna uma defesa, e o agredido se transforma em agressor. A opressão se reproduz em violência. Neste reino, o karma da cólera só pode ser dissolvido pela compaixão, que rompe o ciclo do sofrimento.

Reino dos espíritos famintos

Este plano é dominado pelo apego — não apenas ao material, mas também a imagens, formas, sentimentos e ideias. Os seres aqui vivem em constante insatisfação. Nada do que possuem é suficiente, e tudo o que desejam permanece inalcançável.

Presos ao passado e ansiosos pelo futuro, perdem a capacidade de viver o presente. Essa fome e sede simbólicas os definem como fantasmas do que poderiam ser. Só o desapego pode libertar essa consciência aprisionada.

Reino dos animais

A causa do sofrimento aqui é a ignorância. Os seres não têm discernimento, vivem guiados apenas pelos instintos e permanecem à mercê do medo e da ansiedade constante.

Incapazes de observar a si mesmos, mergulhados em um inconsciente coletivo, esses seres não acumulam karma positivo o suficiente para ascender a reinos superiores. No entanto, vivem plenamente o presente, sem se apegar ao passado ou projetar o futuro. Subsistem — e sobrevivem.

Reino dos humanos

Considerado o primeiro dos reinos superiores, nascer neste plano é uma oportunidade rara. Aqui, o discernimento é possível. A consciência permite observar os acontecimentos e escolher.

Por isso, há responsabilidade ética, moral e espiritual. No entanto, a dor ainda é presente: nascimento, doença, velhice e morte continuam sendo experiências inevitáveis. A ilusão e o desejo são os principais venenos que nos mantêm presos ao ciclo de sofrimento.

Reino dos semi-deuses

Neste plano, o sofrimento é causado pela inveja. Os semi-deuses vivem em ambientes prósperos e belos, mas não conseguem desfrutar disso. Estão obcecados pelos deuses, sempre conspirando para ascender ao nível superior.

Poderosos, inteligentes e talentosos, nada os satisfaz. Competem, disputam e se consomem no ciúme. Aqui, a grama do vizinho é sempre mais verde.

Reino dos deuses

O plano mais elevado da roda existencial, onde tudo parece perfeito. Os deuses vivem em êxtase, com felicidade plena, longevidade, prazer e abundância. Tudo é obtido sem esforço. Contudo, essa realidade também é impermanente.

O sofrimento aqui nasce do orgulho e do prazer excessivo, que geram o karma que levará à queda. Ao se diferenciarem dos outros seres, despertam inveja e se isolam. Esquecem-se de sua essência comum com todos os demais planos.

Parasita

Atenção! A análise a seguir pode conter spoilers.

Com essa breve introdução aos seis reinos, torna-se possível traçar um paralelo entre esses estados de existência e a obra Parasita. A arte, quando sensível e precisa, é capaz de transfigurar realidades ocultas de forma contundente — e foi exatamente isso que Bong Joon-ho realizou.

A trama começa nos apresentando ao cotidiano de uma típica família pobre na Coreia do Sul, enfrentando as durezas da sobrevivência. Vivem em um porão apertado e úmido, um espaço simbólico que pode ser associado ao Reino dos Animais, onde predomina a ignorância. Trata-se da maleficência estrutural de uma sociedade que esconde o que lhe é incômodo: a pobreza, o sofrimento, o incômodo humano.

Esse “esconderijo” social remete a um estado de inconsciência coletiva, reforçado por uma citação do Bardo Thödol — texto clássico da tradição budista tibetana:

“Uma heterogeneidade de raciocínios desconexos, por nos apegarmos a estes, sem considerar a possibilidade de transformação de qualquer ideia, em qualquer outra.”

Esse sofrimento causado pela ignorância leva à existência no Reino dos Animais: os instintos básicos são os guias, e o foco da vida se restringe à subsistência. É interessante notar como o plano mirabolante da família Ki-taek para infiltrar-se na casa dos Park é aceito com naturalidade pelo espectador. Torcemos para que o plano funcione, mesmo quando a ética se dissolve — e o fazemos porque entendemos aquele desejo de sobrevivência.

Essa identificação revela o quanto também estamos presos ao medo, ao desconhecido e à ignorância. Rimos, nos envolvemos, e nem percebemos que estamos assistindo a um retrato cruel de mecanismos de defesa social. Quando a família finalmente parece alcançar o conforto, projetando sonhos e expectativas, o porão volta à cena. A consciência desperta — e as ilusões começam a ruir.

“Acho que o senhor Namgoong tinha vergonha deste esconderijo.”
Moon-gwang

Entre os deuses e os fantasmas famintos

Em oposição à família Ki-taek, temos os Park: ricos, confortáveis, cercados de beleza e segurança. Vivem uma realidade de aparente perfeição, própria do Reino dos Deuses. A casa — símbolo tradicional de poder — é um espaço amplo, com jardim meticulosamente cuidado, onde a grama verde é uma espécie de troféu social.

Essa representação não é aleatória. Desde a antiguidade, o jardim é símbolo de status, do Éden, dos castelos europeus, dos subúrbios norte-americanos. E a casa dos Park carrega esse ideal orgulhoso da cultura ocidental moderna: sucesso, prestígio e consumo.

Aos poucos, o diretor tece elementos sutis que associam essa família ao Reino dos Semi-Deuses e dos Espíritos Famintos. Aulas de inglês, admiração pelos EUA, fascínio infantil por índios norte-americanos e símbolos escoteiros revelam um ideal aspiracional e um espírito autofágico capitalista. Há prazer, mas também vazio e insatisfação — sintomas do apego e do orgulho, que segundo o budismo, são causas diretas do sofrimento.

Esses planos superiores se mostram frágeis, pois todos os reinos estão interligados. A ignorância, o desejo e o ódio — os “três venenos da mente” — transitam entre as camadas sociais, afetando todos. Ninguém está imune.

O inferno: raiva, vingança e colapso

No clímax do filme, o ciclo se fecha com o despertar da cólera. A raiva explode. O sangue, a violência e a tragédia tomam conta da narrativa. Esse é o retrato claro do Reino do Inferno, onde os seres são consumidos pela agressividade e pela dor.

Frequentemente imaginamos o inferno como algo distante, pós-morte. Mas ele pode se revelar num piscar de olhos. Basta um gatilho, uma frustração profunda, um acúmulo de humilhações. E o inferno se instala — não como metáfora, mas como experiência.

“Tudo aconteceu tão rápido, que eu nem acredito que foi real.”
Kim Ki-taek

Planos

“Purificado está o ar da manhã após forte chuva, acordo de minha cama do aconchego de meu lar, como é belo o céu essa manhã.”

Com um contraste doloroso, a cena da forte chuva antecede o inevitável. Em questão de segundos, a realidade desaba. O porão transborda, a água sufoca os pertences e arrasta com ela as projeções, os sonhos e as idealizações. Toda aquela estrutura construída pela mente — os planos — se desfaz como papel molhado.

Até ali, sempre houve um plano. Um raciocínio lógico, engenhoso, uma aposta da mente na sua própria esperteza. Como seres que habitam o reino humano, buscamos estratégias para escapar do sofrimento, acreditando que tudo pode ser resolvido com um plano bem-feito.

Mas o que Parasita nos mostra é que a vida não respeita planejamentos racionais. Estamos à mercê de forças maiores: sociais, kármicas, inconscientes. E por mais que tentemos controlar o mundo externo, permanecemos vulneráveis às armadilhas da ilusão, ao desejo, à separação.

Criamos, sustentamos e defendemos uma realidade construída sobre imagens, ideias, julgamentos e expectativas. Mas, como ensina o budismo, tudo isso é impermanente. Tudo isso é maya — ilusão. E quando nos apegamos a ela, sofremos.

A última cena do filme é um convite à reflexão sobre empatia e impermanência. O plano final que Ki-woo projeta — trabalhar duro, comprar a casa e resgatar o pai — é tão triste quanto poético. Queremos acreditar com ele. Queremos que dê certo. Mas, no fundo, sabemos que não passa de mais uma fantasia.

O inverno chega. O frio da noite cai sobre a esperança. E somos deixados com duas palavras que ressoam como um koan budista: até logo…

Morse: .- — — .-.

Por fim, os ensinamentos budistas nos lembram que, por meio da virtude e do autoconhecimento, é possível transcender o ciclo de renascimentos e o sofrimento que ele perpetua. Alcançar essa liberdade, no entanto, não é fugir do mundo — é se libertar de si mesmo.

Libertar-se dos desejos, dos apegos, das ilusões. Libertar-se das narrativas que contamos a nós mesmos todos os dias.

A realidade, afinal, está onde nossa atenção repousa. Quantas perspectivas cabem num único acontecimento? Em qual ângulo você está observando? Será sua interpretação a única possível?

As respostas ainda nos parecem codificadas. E talvez essa seja a sina de nossa espécie: tatear no escuro, em busca de sentido, fugindo da sombra da própria ignorância.

Num mundo em crise, repleto de conflitos internos e coletivos, não há mais escapatória. Precisamos buscar equilíbrio entre o “eu” e o “nós”. Só na união desses dois aspectos reside a concórdia verdadeira.

A mensagem ainda está por ser decifrada. Mas algumas pistas já se revelam: amor, compaixão, desapego, sabedoria, temperança, paciência.

E você? Quantas realidades identificou no filme? Em qual reino está vivendo neste momento?

FAQ sobre o filme Parasita e o Budismo

1. Qual é a conexão entre Parasita e o budismo?
O filme reflete os seis reinos budistas como estados mentais: raiva, apego, ignorância, inveja, orgulho e desejo.

2. O porão da casa representa o quê?
O porão simboliza o inconsciente coletivo e a ignorância que a sociedade prefere esconder — um dos venenos mentais segundo o budismo.

3. Quem representa o reino dos deuses no filme?
A família Park, com sua vida confortável e ilusoriamente perfeita, representa o reino dos deuses — marcado por orgulho e prazer.

4. O que a chuva representa em Parasita?
A chuva funciona como purificação e destruição: dissolve os planos e revela as verdades ocultas sob a ilusão.

5. Qual é a mensagem final do filme segundo o budismo?
Que a realidade é impermanente, os planos são frágeis, e a verdadeira libertação está no autoconhecimento e no desapego.

Jorge Giampa

Consultor de Saúde e Bem-Estar, Professor de Yoga, Pilates e Qi Gong. Estudioso do corpo, mente e alma humana. Formado nas áreas de Educação Física e Terapias Corporais.

Especialidades: Yoga

VER PERFIL AGENDAR CONSULTA

Aviso de conteúdo

É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita. O site não se responsabiliza pelas opiniões dos autores deste coletivo.

Deixe um comentário

Veja Também