Como eram boas as noites de cruviana

Reflexão sobre o medo nas cidades, a perda da vida comunitária e a memória afetiva da cruviana nas noites do passado.
Como eram boas as noites de cruviana
Foto: Era Sideral / Direitos Reservados

“As grades do condomínio são para trazer proteção, mas também trazem a dúvida se é você que tá nessa prisão.” Era assim que o grupo musical O Rappa narrava as transformações urbanas em curso nas capitais brasileiras no ano de 1999. Passaram-se duas décadas desde o lançamento dessa canção, e seus versos permanecem atuais ao descrever a sensação de insegurança nas metrópoles brasileiras.

O processo de urbanização brasileiro é marcado, em grande medida, por um crescimento desordenado por meio de fluxos migratórios. Nessa conjuntura, torna-se comum o fenômeno do deslocamento de áreas rurais para centros administrativos em busca de melhores condições de vida e oportunidades.

A transformação e o inchaço das cidades tendem a provocar mudanças em hábitos rotineiros e uma reinvenção do cotidiano. A figura do “forasteiro” ou “estranho” é constantemente associada à insegurança, conforme destaca Bronislaw Geremek:

O conhecimento partilhado, que incluía tanto o conhecimento dos homens quanto a semelhança dos costumes, do uso da língua e até do jargão, da maneira de vestir, produzia uma sensação de segurança. Quem se mostrasse fora desse âmbito de conhecimentos provocava uma sensação de insegurança.

Dessa maneira, muitas famílias passaram a buscar segurança atrás de grades de condomínios particulares, muito embora isso destruísse parte da sua liberdade. Além disso, ritos urbanos que eram considerados marcos comunitários foram, aos poucos, desaparecendo — como a ideia de sentar-se à porta de casa para conversar com os vizinhos.

O historiador Bernardo Sá Filho aponta que, na cidade de Teresina, no final dos anos 1960, era comum o hábito de sentar-se à porta da rua ou no terreiro, depois do jantar, onde os sujeitos deleitavam-se com conversas amistosas sobre o dia de trabalho ou sobre a rotina da cidade.

Nesses ambientes de tranquilidade, um dos momentos mais sublimes era a espera pela cruviana, entidade que podemos conhecer melhor por meio da narrativa de Castelo Branco:

— Catarina, vai chover! Tira a roupa do sol! Hoje vai ser noite de cruviana… Quem não dormir cedo vai se ver com a cruviana. Cuidado!

A imaginação infantil começou a trabalhar. Que diabo era cruviana? O que seria?

— Mamãe, o que é cuviana?

— Cuviana não, filha. Cru, cruviana. Aparece em noite de chuva. Vês aquela nuvem branca, carregadinha d’água? Ela e outras nuvens vêm à frente da cruviana. Ela, porém, só chega à noite. De dia, o sol não deixa aparecer. Por isso, ela só vem com a chuva e sempre à noite.

— Mamãe, a cruviana é uma princesa? Vestida de ouro?

— Boba! A cruviana é o frio, este friozinho que chega com a chuva. Embrulhe-se bem! Hoje é noite de cruviana.

A cruviana, entidade tão esperada por nossos antepassados, parece ter se perdido no tempo e desaparecido da nossa memória, ao compasso em que as cadeiras sumiam das nossas portas. As transformações do urbano vão construindo novas narrativas e outros laços de pertencimento. Assim gira a roda da história.

FAQ sobre noites de cruviana

O que significa “cruviana” na cultura popular?
Cruviana é um termo popular usado para descrever o frio noturno que chega com a chuva, especialmente no Norte e Nordeste.
Por que a música do O Rappa foi citada no texto?
A canção expressa a sensação de insegurança urbana que ainda persiste nas cidades brasileiras, mesmo décadas depois.
Como os “forasteiros” são associados à insegurança nas cidades?
Pela falta de reconhecimento e semelhança com os costumes locais, segundo o historiador Bronislaw Geremek.
O que representa o hábito de sentar à porta de casa?
É um rito comunitário urbano que simboliza convivência e pertencimento, cada vez mais raro nas grandes cidades.
Por que a cruviana desapareceu da memória popular?
Porque os modos de vida urbanos mudaram, afastando as pessoas de práticas tradicionais e do convívio entre vizinhos.

Carlos Mota

Professor de História. Doutorando em História do Brasil. Pesquisador no campo da Imprensa, Memória, Política e Cultura. Amante do futebol, chuteiras pretas, cuscuz de arroz e um outro tanto de coisas.

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