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Narrativas de uma terra vermelha como a brasa de São João
O fogo, visto como um elemento simbólico nos festejos juninos, já foi associado a práticas infernais ao longo da história. No período da chegada dos portugueses ao território que viria a se chamar “Brasil”, esse debate foi levantado por diversos grupos sociais.
Inicialmente, essa região foi chamada de “Terra de Santa Cruz”, em razão de uma clara influência religiosa. Posteriormente, foi renomeada para “Brasil”, devido à grande quantidade de árvores “avermelhadas como brasa” presentes no litoral. Essa mudança gerou contestações em algumas alas religiosas, que associavam o vermelho e o fogo ao reino do maligno.
Segundo a historiadora Laura de Mello e Souza, a utilização do nome “Brasil” para designar o local ocupado pelos portugueses no início do século XVI considerava a presença abundante de uma madeira tintorial de cor avermelhada. Assim, o termo “Brasil” significaria “vermelho como uma brasa”.
Nos escritos do frei Vicente do Salvador, autor do primeiro documento da historiografia brasileira — o livro História do Brasil (1627) — a escolha desse nome teria sido uma ação do Diabo:
“O dia que o capitão-mor Pedro Álvares Cabral levantou a cruz, que no capítulo atrás dissemos, era a 3 de maio, quando se celebra a invenção da santa cruz em que Cristo Nosso Redentor morreu por nós, e por esta causa pôs nome à terra que havia descoberta de Santa Cruz e por este nome foi conhecida muitos anos. Porém, como o Demônio com o sinal-da-cruz perdeu todo o domínio que tinha sobre os homens, receando perder também o muito que tinha em os desta terra, trabalhou que se esquecesse o primeiro nome e lhe ficasse o de Brasil, por causa de um pau assim chamado de cor abrasada e vermelha com que tingem panos, do qual há muito nesta terra como que importava mais o nome de um pau que tingem panos, que o daquele divino pau, que deu tinta e virtude a todos os sacramentos da Igreja, e sobre que ela foi edificada e ficou tão firme e bem fundada como sabemos.”
O cunho religioso, presente na proposição de Vicente do Salvador, era uma característica marcante do período, sobretudo na visão de mundo dos europeus. A expansão marítima, que trouxe os portugueses até o Pindorama, transportava, ao mesmo tempo, missionários e soldados.
Laura de Mello e Souza observa que “a religião forneceu mecanismos ideológicos justificatórios da conquista e colonização da América, encobrindo e escamoteando as atrocidades cometidas em nome da fé”. Nesse contexto, uma ideia central no processo de colonização do Brasil era a narrativa de correção e resgate das almas dos indígenas.
Dessa forma, percebemos que a identificação de um inimigo “vermelho” não é recente na história brasileira. Desde o início, as mazelas promovidas pelos detentores da fala foram muito mais impactantes que os inimigos em si. O fantasma vermelho do fogo tem sido constantemente ressuscitado na história do Brasil para justificar as mais variadas formas de violência.
FAQ sobre narrativas de uma terra vermelha
O que significa o nome “Brasil”?
Segundo Laura de Mello e Souza, “Brasil” significa “vermelho como uma brasa”, por causa da madeira tintorial encontrada no litoral.
Por que o nome “Terra de Santa Cruz” foi substituído?
O nome foi trocado por “Brasil” devido à abundância do pau-brasil, o que gerou resistência em setores religiosos.
Quem foi Vicente do Salvador?
Frei Vicente do Salvador foi autor do primeiro livro de historiografia do Brasil e via a troca de nome como obra do Diabo.
Qual o papel da religião na colonização?
A religião serviu como justificativa ideológica para a dominação e a catequese dos povos indígenas.
O que representa o “fantasma vermelho” na história do Brasil?
Representa a retórica usada historicamente para justificar violências associadas ao simbolismo do fogo e da cor vermelha.
Carlos Mota
Professor de História. Doutorando em História do Brasil. Pesquisador no campo da Imprensa, Memória, Política e Cultura. Amante do futebol, chuteiras pretas, cuscuz de arroz e um outro tanto de coisas.
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