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A espiritualidade no cativeiro político: quando a fé é usada contra a própria consciência
A fé virou arma eleitoral, escudo ideológico e símbolo de guerra cultural. Mas onde ficou o silêncio, a compaixão e o sagrado?
“A fé sempre foi um refúgio. Agora, virou trincheira.”
O sagrado foi algemado por slogans, e a espiritualidade — essa força íntima e livre — tornou-se escrava de interesses partidários.
Durante séculos, a espiritualidade serviu como refúgio, resistência e renascimento. Foi no silêncio da oração, na simplicidade dos gestos e na comunhão com o invisível que muitos encontraram sentido para a existência. Mas nos últimos tempos, algo mudou — e profundamente.
No Brasil contemporâneo, a espiritualidade foi colocada em cativeiro. Aprisionada por discursos ideológicos, usada como símbolo de guerra cultural, e reduzida a instrumento de dominação eleitoral, a fé perdeu sua essência: a liberdade interior.
A espiritualidade como fonte de consciência, não de controle
Espiritualidade não é sinônimo de religião institucionalizada. Antes de templos, dogmas ou rituais, ela é vivência íntima e ética. É a capacidade de sentir o outro, de silenciar o ego, de buscar sentido para a existência. É, essencialmente, um exercício de consciência.
Cientistas sociais como Cecília Loreto Mariz mostram que a espiritualidade pode ser tanto uma força de emancipação quanto um canal para a captura ideológica, dependendo de como é mobilizada nas comunidades.
Mas quando ela é sequestrada por projetos de poder, transforma-se em seu oposto: vira linguagem de medo, de exclusão, de moralismo autoritário. Foi exatamente isso que se intensificou no Brasil pós-2018.
O impacto da instrumentalização da fé na vida cotidiana
O uso político da fé não acontece apenas nos palanques — ele se infiltra nos lares, nas igrejas e até na intimidade das relações familiares. A espiritualidade, quando convertida em linguagem de guerra, transforma-se em campo de batalha emocional.
Segundo o Instituto de Estudos da Religião (ISER), houve um aumento expressivo no uso de expressões religiosas em campanhas eleitorais da nova direita, frequentemente associadas a ideias de “missão espiritual” e “guerra cultural”.
O Observatório Evangélico destaca que esse discurso não apenas influencia o voto, mas também cria ambientes de intimidação simbólica dentro de igrejas e famílias. Fiéis que discordam passam a se sentir isolados ou hereges. A fé, antes fonte de consolo, torna-se um instrumento de vigilância moral.
Esse processo gera culpa, medo e sofrimento psíquico. O sagrado se esvazia quando deixa de ser escolha e passa a ser imposição.
As feridas de quem acreditou
Talvez você também esteja cansado. Cansado de ver sua fé usada como arma. De ouvir palavras sagradas transformadas em slogans. De sentir que o sagrado foi ocupado por quem não escuta, apenas comanda.
Muitos brasileiros estão feridos — não apenas economicamente ou socialmente, mas espiritualmente. Pesquisas conduzidas por Esther Solano mostram que parte dos evangélicos vive hoje um conflito interno: divididos entre sua fé sincera e o desconforto com o discurso de ódio promovido por algumas lideranças políticas-religiosas.
O silêncio que foi silenciado
Antes, o silêncio era parte da fé. Um espaço de escuta interior, de entrega, de presença. Hoje, ele foi soterrado por gritos de guerra, transmissões ao vivo, vídeos com versículos distorcidos e chamadas para o confronto. O barulho venceu o espírito. E muitos se perguntam: onde foi parar o mistério?
A espiritualidade sequestrada não gera vida. Gera angústia, culpa e uma solidão que não encontra abrigo — nem mesmo dentro da própria alma.
A resistência espiritual começa no íntimo
Apesar do cenário, há resistência. Em comunidades de base, iniciativas ecumênicas, grupos de oração progressistas e mesmo no recolhimento individual, há quem se recuse a transformar sua fé em arma.
Como aponta Sabrina Fernandes em Sintomas Mórbidos, a espiritualidade pode — e deve — ser um dos principais espaços de resistência ética ao colapso moral promovido pelo autoritarismo religioso-político. Essa resistência não se faz com gritos, mas com lucidez. É uma reocupação simbólica do sagrado, em sua essência libertadora.
Libertar o sagrado é também libertar a si mesmo
O Brasil precisa de cura — e ela não será apenas política. Precisamos de uma reconstrução espiritual. Uma espiritualidade que liberte, que acolha, que dialogue. Recuperar a fé do cativeiro político é resgatar o que há de mais humano em nós: a busca por sentido com liberdade, amor e justiça.
Libertar a fé é também libertar a si mesmo. E talvez o começo dessa libertação seja reaprender a escutar o silêncio, a duvidar dos gritos, a confiar mais na compaixão do que na promessa. Porque o verdadeiro sagrado não grita. Ele chama — com amor.
FAQ — perguntas frequentes sobre o tema
1. Este artigo é contra a fé religiosa?
Não. O texto defende a espiritualidade como espaço livre e consciente, e critica apenas o uso político da fé como ferramenta de dominação.
2. Qual a diferença entre espiritualidade e religião?
A espiritualidade é uma busca interior por sentido, conexão e transcendência. A religião pode ser um caminho institucional para isso — mas nem sempre o único.
3. A crítica aqui se aplica a todos os religiosos?
De forma alguma. O texto valoriza a fé sincera e a vivência espiritual autêntica. A crítica é direcionada ao uso estratégico da religião por lideranças políticas.
4. Ainda é possível recuperar a espiritualidade verdadeira?
Sim. A espiritualidade sobrevive nas margens, nos silêncios, na resistência ética. Libertar a fé do cativeiro é um ato individual e coletivo.
5. Como identificar quando a fé está sendo manipulada?
Quando ela é usada para gerar medo, julgar os diferentes, impedir o debate ou exigir obediência política. A verdadeira fé liberta — nunca controla.
Para aprofundar o tema:
- A Máquina do Ódio, de Patrícia Campos Mello (Cia das Letras)
- Sintomas Mórbidos, de Sabrina Fernandes (Autonomia Literária)
- O Ódio como Política, org. Esther Solano (Boitempo)
- Cidadania e Religião no Brasil Contemporâneo, de Cecília Mariz (SciELO)
- Documentário O Dilema das Redes (Netflix)
Referências consultadas:
- ISER – Relatório Política e Religião nas Eleições 2022
- Observatório Evangélico – observatorioevangelico.org
- Mariz, Cecília Loreto – Cidadania e religião no Brasil contemporâneo (SciELO)
- Fernandes, Sabrina – Sintomas Mórbidos, Autonomia Literária
- Solano, Esther – O ódio como política, Boitempo
- Campos Mello, Patrícia – A Máquina do Ódio, Cia das Letras
- Canal Tese Onze no YouTube
Redação Sideral
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