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A eleição de um meme: como o Brasil escolheu um herói virtual que não existia
Em 2018, o Brasil assistiu a uma das campanhas presidenciais mais atípicas de sua história. Jair Bolsonaro, até então deputado de atuação discreta, ascendeu ao topo das pesquisas com uma imagem construída majoritariamente nas redes sociais. Em vez de planos de governo, apresentava frases de impacto. Em vez de debates, transmissões ao vivo. Em vez de propostas estruturadas, memes.
Boa parte do eleitorado o via como um “mito”: corajoso, patriótico, incorruptível. Essa percepção não vinha de debates televisivos nem de entrevistas com propostas concretas — mas de vídeos editados, mensagens em grupos de WhatsApp e montagens onde era retratado como um justiceiro ou salvador da pátria. Era a ascensão da política-meme.
Um personagem, não um projeto
Durante a campanha, Bolsonaro optou por não participar de debates presidenciais e apresentou um plano de governo resumido, com poucos detalhes técnicos. Sua candidatura se sustentava na ideia de representar o “povo comum” contra um sistema político supostamente corrompido e ideologizado.
Ao evitar confrontos diretos com os demais presidenciáveis, sua imagem ficou protegida de questionamentos mais profundos. Isso, aliado à força emocional de sua retórica e à viralização de conteúdos simbólicos, permitiu que ele se consolidasse como figura carismática para milhões — mesmo sem apresentar respostas claras para os desafios do país.
O arquétipo do “herói guerreiro”: entre mito e ilusão
Na psique coletiva, figuras políticas costumam despertar arquétipos — imagens primordiais que evocam emoções profundas. Bolsonaro foi, para muitos, a encarnação do arquétipo “guerreiro” ou “herói de combate”, alguém que se propunha a enfrentar um mal difuso: a corrupção, a esquerda, o sistema, o globalismo.
Esse herói, no imaginário junguiano, não precisa ser racional nem conciliador. Ele age com instinto, fala o que pensa, promete romper com tudo. Representa ordem, força e proteção — mesmo que de forma bruta.
Mas quando o arquétipo é encarnado por um personagem que não está à altura da complexidade do papel, ele se esvazia e se torna caricatura. O guerreiro se transforma em bufão; o herói, em símbolo de frustração.
O governo e o confronto com a realidade
Com a chegada ao poder, o estilo direto das redes sociais permaneceu como marca registrada da gestão. Mas, quando crises reais se impuseram — como a pandemia de COVID-19, o aumento da inflação e as tensões institucionais —, o personagem carismático foi colocado à prova.
A condução da pandemia foi alvo de duras críticas de especialistas, governadores e órgãos internacionais. A resistência inicial à compra de vacinas, o incentivo a tratamentos ineficazes e o conflito constante com o STF e a imprensa colocaram o governo sob constante tensão.
A imagem construída nos memes — de força, firmeza e liderança — passou a contrastar com a dificuldade de governar em um país complexo e polarizado.
8 de janeiro: quando a fantasia simbólica virou ataque à democracia
Após a derrota nas eleições de 2022, um novo capítulo foi escrito. Milhares de apoiadores de Bolsonaro, inconformados com o resultado eleitoral, invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes em Brasília, no dia 8 de janeiro de 2023. Alimentados por teorias de fraude e por discursos que deslegitimavam o sistema eleitoral, promoveram o maior ataque à democracia brasileira desde o fim da ditadura militar.
Esse foi o ápice do arquétipo distorcido: o “herói traído” que precisa restaurar a ordem à força. Mas em vez de um ato redentor, o que se viu foi vandalismo, ruptura e violência — resultado de anos de radicalização emocional alimentada por símbolos sem responsabilidade.
O depoimento ao STF: confronto com a realidade jurídica
Em 10 de junho de 2025, Jair Bolsonaro prestou depoimento ao Supremo Tribunal Federal. Ele é investigado por suposto envolvimento em um plano para reverter o resultado das eleições, com base em delações, documentos e reuniões ocorridas após o pleito de 2022.
Durante o depoimento, Bolsonaro negou qualquer tentativa de golpe, afirmou que agiu dentro da Constituição e rechaçou as acusações. Reconheceu ter se reunido com militares após a derrota, mas disse que não houve planos de ruptura institucional. Segundo ele, “nunca se falou em golpe”, e que esse tipo de ideia é “abominável”. Declarou que as reuniões tratavam de “possibilidades dentro da Constituição” para responder à rejeição de uma petição do PL no TSE, e que tais discussões foram abandonadas ainda na segunda reunião.
Bolsonaro também afirmou que “não havia clima” para qualquer tipo de ação institucional de ruptura, que o ambiente político era de desmobilização e que as Forças Armadas jamais aceitariam cumprir ordens ilegais. Afirmou: “As Forças Armadas têm missão legal. Missão ilegal não é cumprida. Em nenhum momento alguém me ameaçou de prisão” — respondendo à versão do brigadeiro Baptista Jr., que disse que o general Freire Gomes teria cogitado prender o então presidente caso insistisse numa ruptura.
Sobre a chamada “minuta do golpe”, Bolsonaro alegou que o documento foi exibido de maneira superficial em uma televisão, sem cabeçalho ou validade formal. Negou ter escrito, alterado ou assinado qualquer parte do texto, contradizendo a delação de Mauro Cid, que afirmou que Bolsonaro sugeriu alterações na minuta, incluindo a manutenção apenas do nome de Alexandre de Moraes como alvo de prisão.
O ex-presidente também pediu desculpas a Alexandre de Moraes por declarações passadas em que insinuou corrupção no TSE. Afirmou que se tratavam de desabafos sem qualquer base: “Não tem indícios nenhum, senhor ministro. Me desculpe, não tinha qualquer intenção de acusar de qualquer desvio de conduta os senhores três”.
Sobre seus apoiadores, disse que nunca estimulou manifestações ilegais e que os que pediam AI-5 ou intervenção militar eram “malucos” que “nem sabiam o que significava aquilo”. Declarou que orientava seus apoiadores a respeitarem a legalidade e negou ter incentivado os acampamentos em frente a quartéis. Afirmou que, antes de viajar para os EUA, gravou vídeos pedindo paz e desobstrução de rodovias: “Se eu almejasse um caos no Brasil, era só ficar quieto”.
Por fim, admitiu que viveu um “vazio” após a derrota eleitoral e que conversava com militares de forma informal. Confirmou que recebeu cerca de R$ 17 milhões em doações via Pix após o fim do mandato, justificando que o valor foi doado por apoiadores para ajudá-lo após a perda dos benefícios de ex-presidente.
O processo segue em curso, e o julgamento é esperado ainda em 2025.
O preço de confundir arquétipos com liderança
Governar exige mais do que ocupar um arquétipo. A política precisa de responsabilidade, planejamento e visão coletiva. Quando a figura do herói é usada para justificar o autoritarismo, a desinformação ou a ausência de diálogo, ela se torna perigosa.
O Brasil pagou um preço alto por ter confundido símbolo com substância. E o episódio do 8 de janeiro é o lembrete mais doloroso disso.
Um chamado à consciência coletiva
O que o Brasil viveu é uma lição profunda: memes podem mobilizar, arquétipos podem inspirar, mas nenhum país pode ser governado por personagens simbólicos. Precisamos de líderes reais, com propostas reais, conectados à vida concreta da população.
A maturidade política exige enxergar além da imagem, além do carisma, além do mito. Exige reconhecer que o verdadeiro herói não é aquele que grita mais alto — mas o que constrói com responsabilidade e entrega.
FAQ sobre a eleição de um meme no Brasil
O que Jair Bolsonaro disse no depoimento ao STF sobre o golpe?
Ele negou qualquer intenção golpista, disse que nunca discutiu a aplicação de um golpe e afirmou que buscava apenas soluções “dentro da Constituição” após a eleição de 2022.
O que é a minuta do golpe e qual foi o envolvimento de Bolsonaro?
A minuta era um documento encontrado com o ex-ministro Anderson Torres prevendo intervenção no TSE. Bolsonaro negou autoria, alegando ter visto o texto rapidamente em uma reunião, sem discutir ou validar o conteúdo.
Bolsonaro admitiu ter se reunido com militares após a eleição?
Sim. Ele afirmou que procurou militares de forma informal para conversar sobre a conjuntura, e que isso era fruto de um “vazio” pós-eleitoral. Negou articulações institucionais para ruptura.
Por que Bolsonaro recebeu R$ 17 milhões por Pix?
Após deixar o cargo, Bolsonaro afirmou que recebeu doações espontâneas via Pix de apoiadores. Justificou que o valor foi para ajudá-lo financeiramente após a perda dos benefícios de ex-presidente.
Qual é o significado simbólico da trajetória de Bolsonaro?
Ele representou, para muitos, o arquétipo do “herói guerreiro”. Mas, diante da complexidade do cargo, essa figura simbólica se mostrou incompatível com a liderança exigida. O episódio de 8 de janeiro é visto como a explosão do mito que não se sustentava na realidade.
Redação Sideral
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