Artigos
Amarelo: o conto sobre um cão que devolveu a esperança a um homem invisível
A chuva não cessava. Persistia em lavar telhados e avenidas, deixando expostos aqueles que faziam da rua a sua moradia. Encolhidos e molhados, sob a proteção precária de uma marquise, um homem e seu fiel escudeiro resistiam. O cão, já velho, outrora dourado e altivo, permanecia manso, dócil e amigo.
No limite da sanidade, encurralado pela solidão, o homem se tornara um mendigo, esquecido e perdido na multidão que passava sem notar sua existência. A vida, que sempre oferece escolhas, muitas vezes nega os caminhos, virando as costas a quem mais precisa. Assim, ele se entregou à única vida que restou: a das ruas.
Entre surras e roubos de outros moradores, ele lutava diariamente por um pedaço de pão ou por uma mão amiga que, às vezes, deixava escapar uma moeda pelos dedos. As noites, passadas encolhido em pedaços de papelão, traziam medo e a angústia de não acordar. Quando sua mente conseguia escapar da bruma escura que o envolvia, ele pedia apenas uma coisa: morrer.
Até que, numa noite em que o vento soprava gélido e cortante, o homem sentiu o calor reconfortante de um corpo ao seu lado. Virou-se e, no meio da escuridão, viu um grande cão amarelo que, silencioso, lambeu sua mão.
A vida voltou a sorrir. Agora, ele caminhava pelas ruas ao lado do novo companheiro: Amarelo. Finalmente, dormia a noite toda, pois se sentia protegido sob o olhar vigilante do amigo. Suas parcas refeições eram sempre divididas. Amarelo, em troca, apenas olhava e balançava o rabo, sem jamais pedir nada.
O homem, antes perdido e solitário, reencontrou sua razão de viver. Voltou a rezar, voltou a sonhar e, sobretudo, voltou a acreditar que, um dia, sairia das ruas. Sonhava em levar consigo o único e grande amigo: Amarelo.
Com o tempo, as surras e os roubos cessaram. Ele foi aceito na comunidade dos moradores de rua. Porém, numa manhã cinzenta, quando o sol tentava, em vão, acordar a cidade, a vida mais uma vez se mostrou cruel.
Em meio ao caos do trânsito, um carro perdeu o controle, subiu na calçada e atropelou o valente Amarelo. O cão, sempre leal, se jogou à frente do amigo para defendê-lo do invasor e carrasco. Agachado no chão, com a cabeça do cão sobre o colo, o homem chorou inconsolável.
Seu lamento ecoou por todo o quarteirão, atraindo a atenção dos companheiros de rua e dos transeuntes apressados. Em vão tentaram separar Amarelo do amigo, que o abraçava com todas as forças, como se quisesse retê-lo para sempre.
A vida, com sua dureza, não tardou a agir novamente. Apenas uma semana após a morte de Amarelo, o homem, ainda mais solitário e perdido, tornou-se também vítima de um atropelamento.
Quando a noite caiu e a lua iluminou o triste cenário dos moradores de rua, um uivo se fez ouvir. De rabo abanando, Amarelo caminhava ao lado do amigo. Juntos, seguiam em direção à sua última morada.
Lá, onde não existe frio, o vento sopra ameno, as roupas são brancas e limpas, e a água brota cristalina entre as rochas, com leve sabor de mel. Os campos são floridos e à mesa todos são bem-vindos.
Enquanto isso, na grande cidade, a chuva continuava a cair, ainda mais forte. Afinal, como cantam os poetas, “somente Deus pode entender como é infinda”.
Rubens Muniz Junior
Rubens de Azevedo Muniz Junior, economista, administrador de empresa, trader aposentado, 82 anos de idade, nascido em Pirajuí, é poeta, cronista, contista, romancista e amante de boa leitura. Viajou e residiu, a trabalho, fora do Brasil.
VER PERFILISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Antes de continuar, esteja ciente de que o conteúdo discutido entre você e o profissional é estritamente confidencial. A Era Sideral não assume qualquer responsabilidade pela confidencialidade, segurança ou proteção do conteúdo discutido entre as partes. Ao clicar em CONTINUAR, você reconhece que tal interação é feita por sua própria conta e risco.
Aviso de conteúdo
É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita. O site não se responsabiliza pelas opiniões dos autores deste coletivo.
