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O macho nosso de cada dia: uma crônica sobre o macho performativo que resiste ao tempo
Às vésperas dos 60 anos, já deveria ter feito as pazes com minhas fragilidades. Mas não: vez ou outra, me pego encenando uma versão inflada de mim mesmo. Um macho performativo em miniatura, desses que resistem ao tempo, à consciência e até às sessões de terapia.
Não é nada épico, aviso logo. Não saio distribuindo gritos em mesa de bar nem desfilo bíceps inexistentes (já deu para perceber que o lenhador da foto não sou eum certo?). Mas está lá, escondido em gestos quase banais. Quando falo mais alto do que preciso, para dar a impressão de firmeza. Quando escondo a emoção em uma piada cínica, só para não admitir que aquilo me atravessou. Ou quando corrijo alguém no impulso, como se fosse guardião da verdade universal — afinal, que macho performativo resiste à tentação de estar sempre certo?
Dilema geracional
O curioso é perceber que essas pequenas encenações denunciam justamente o contrário do que pretendem: não a força, mas a vulnerabilidade. É como se o menino que fui ainda precisasse provar ao mundo que é homem, como se a masculinidade não estivesse resolvida depois de tantos anos. E aqui entra um dilema geracional: nós, homens da minha idade, fomos treinados para performar mais do que para sentir. Mesmo quando tentamos nos libertar, a máscara insiste em reaparecer.
Trato dessas mazelas na terapia, onde aprendi que reconhecer a própria fragilidade é um ato de coragem maior do que qualquer demonstração de virilidade. Tento, desesperadamente, ouvir o outro, seja quem for, tenha a idade que tiver. Principalmente meus filhos, que carregam olhares de um tempo novo, e minha companheira de mais de três décadas, que me conhece melhor do que eu mesmo e não deixa passar minhas pequenas encenações. Escutá-los é, talvez, meu maior exercício espiritual.
Teatro ultrapassado
Não digo que seja fácil. O macho performativo é persistente. Ele cochicha no ouvido: “fala mais alto”, “mostra que sabe”, “não demonstra fraqueza”. Mas, aos poucos, tenho aprendido que a verdadeira força não se mede em decibéis nem em certezas. Ela se mede na capacidade de silenciar para ouvir, de acolher o que não se controla, de reconhecer que a vida — como os sonhos mais absurdos — não cabe em roteiros prontos.
Se ainda me pego atuando nesse teatro ultrapassado, pelo menos já não tenho mais a ilusão de que isso me faz maior. Ao contrário: é justamente no instante em que consigo largar a performance que sinto o homem real respirar. E, com quase 60 anos, já é tempo de deixar o palco e viver a plenitude.
Rogério Victorino
Jornalista especializado em entretenimento. Adora filmes, séries, decora diálogos, faz imitações e curte trilhas sonoras. Se arriscou pelo turismo, estilo de vida e gastronomia.
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