Artigos
Feliz Natal João de Deus: um conto natalino que bem que poderia ser realidade
Manhã típica de inverno, tempo nublado, o Sol querendo despertar, o vento sopra frio e constante. O movimento é intenso, ônibus chegando e partindo, passageiros embarcando e desembarcando no maior terminal Rodoviário do Brasil, São Paulo, Capital. Desembarcando de um ônibus chegado do Nordeste, uma mulher segura um pequeno menino, magrinho, olhos grandes e tristes, talvez cinco anos.
Carrega na outra mão apenas uma sacola. Depois, eles param a poucos metros do ônibus. A mulher encosta o menino em uma coluna do corredor, plataforma da chegada dos ônibus, e diz baixinho:
– Joãozinho, eu vou até o banheiro e já volto, fique aqui e me espere. Não fale com ninguém entendeu? – o menino balança a cabeça para demonstrar que entendeu.
Antes de sair, a mulher abre a sacola, apanha uma velha toalha e a coloca em volta do ombro do pequeno menino. Uma tentativa de protegê-lo do frio.
As pessoas passam apressadas, as horas passam desapressadas e o pobre menino, em pé, espera. A fome, a sede e a vontade de ir ao banheiro, seus companheiros. Já por volta do meio-dia, um homem e uma mulher vestidos de fardas se aproximam do menino e perguntam:
– Oi, garoto! Como é o seu nome?
Joãozinho não responde, pois a “tia” disse para ele não falar com ninguém. Os policiais voltam a perguntar:
– Você está sozinho? – e a resposta é um silêncio.
Quando lágrimas começam a brotar no pequeno rosto cansado, triste e amedrontado… O soluço corta os corações dos policiais. A policial mulher, em um gesto protetor, abraça o menino, suas lágrimas procuram as lágrimas do pequeno ser. Em seguida, o pequeno é levado para um abrigo provisório.
Infelizmente, na grande cidade existe a situação de abandono de crianças, trazidas, tiradas do seio de suas famílias por pessoas, bandidos na expressão real da palavra, que trazem para as grandes cidades crianças, tráfico de pessoas, e as vendem. Final triste na sua maioria, pois as meninas tornam-se escravas do sexo e os meninos levados ao crime.
Os anos passam, o menino que se dizia chamar Joãozinho, de tão bonzinho, as monitoras, funcionárias do grande complexo “educacional” com grade nas janelas, acrescentam ao seu nome a palavra Deus, ficando assim Joãozinho de Deus.
Joãozinho de Deus dividia seu “lar” com mais 800 jovens abandonados e infratores.
Diferente no seu modo de ser, da grande maioria dos meninos que habitavam o mesmo local, Joãozinho de Deus era um bom aluno, ajudava nos deveres dos seus colegas, tanto escolares como no arrumar de suas camas. Excelente aluno de catecismo, além de estar sempre presente nos círculos dos “contadores de histórias”, voluntários que visitam duas vezes por mês o local para contar histórias.
Certa manhã, alguns internos, os mais velhos, liderados por “Cara de Cavalo”, alcunha em homenagem ao bandido dos anos 1950 e 1960 no Rio de Janeiro, resolvem tomar o local; uma revolta se faz em dimensões maiores.
A tropa de choque é chamada, bombas de gás lacrimogêneo, os soldados acompanhados por cães ferozes, adentram na instituição e vão fazendo dos menos rebeldes, prisioneiros. Joãozinho, escondido desde o início da revolta embaixo da cama na enfermaria, tremia de medo e rezava para Nossa Senhora.
Quando uma dor lancinante arranca do seu pequeno peito um grito de sofrimento e angústia. A enorme boca com dentes afiados de um grande cachorro rasgou sua pequena perna, mordendo e não querendo mais largar.
A revolta dos meninos “infratores”, como eram denominados, chegou ao fim. As baixas, feridos, foram muitos, entre eles João de Deus, um “infrator”, humilde e bondoso menino abandonado.
Os jovens são transferidos para outros complexos no interior do Estado. Joãozinho, juntamente com seus amigos inseparáveis, “Olho de Vidro”, codinome de Bento, por ter um olho de vidro, e o seu irmãozinho Leandrinho, seguem para o seu novo lar, um antigo presídio transformado em reformatório de menores infratores ou tão só abandonados.
Neste novo “lar”, a vida é intermediada de surras com correia de couro e palmatórias sem qualquer razão de ser e detenção em solitárias com iluminação 24 horas por dia. Contudo, a maior barbárie praticada contra os meninos, crianças, eram as visitas forçadas. Arrancados de suas camas no meio da noite, eram levados a um quarto onde dois ou três “guardas-instrutores”, monitores e responsáveis, abusavam dos meninos indefesos. Para abafar seus gritos e choros, tapavam suas bocas com tiras de esparadrapos. Os diretores e responsáveis, como médicos e enfermeiros, faziam “vista grossa” aos que lá chegavam seriamente machucados.
Todas as noites, Olho de Vidro dizia que um dia iria fugir levando seu irmão Leandrinho, pois estava cansado de apanhar e ver seu pequeno irmão ser molestado, assim como Joãozinho de Deus. Certa noite, quando a chuva se fazia mais intensa, os ventos e raios cortavam e acoitavam os telhados e vidraças, Olho de Vidro conversa com os dois:
– Esta noite vamos fugir! Eu deixei de baixo dos travesseiros sacos de lixo para vocês colocarem apenas uma ou duas peças de roupa, para se trocarem quando sairmos.
– Bento (o verdadeiro nome do Olho de Vidro), vai dar tudo certo? – pergunta com a voz assustada João de Deus.
– Sim! Vai dar tudo certo! Não tenham medo, estudei tudo direitinho. Nesta noite vão fugir mais uns 30 meninos.
Às 20 horas soou o toque de recolher, todos foram se deitar. Lá fora a chuva castigava os telhados e as copas das árvores. Os trovões e os raios não davam tréguas…
Um pouco antes das 23 horas, Olho de Vidro levanta-se e vai em direção às camas de Joãozinho e Leandrinho. Acorda-os, e os três saem sem fazer ruído ao pátio, campo de futebol. Quando chegam perto do grande muro, Olho de Vidro levanta uma grande tampa e diz:
– Fiquem com esta lanterna, tenho outra. Sigam com cuidado pelo túnel, que vocês vão sair na estrada, vão para o mato e me aguardem. João, tome este relógio (tomara emprestado da professora) e marque exatamente 45 minutos. Caso eu não apareça, vão embora e não olhem para trás.
– Você não vai conosco? – pergunta Leandrinho, além de assustado, quase chorando.
– Eu vou me encontrar com vocês eu prometo, mas tenho que terminar um serviço…
Os meninos sumiram pelo túnel, foram para baixo de uma árvore e começaram a contar os minutos. Passados quase trinta minutos, aparece Olho de Vidro. Suas mãos e roupas estavam sujas de sangue… Logo depois, os internos começam a incendiar os colchões, atirar, jogar pelas janelas móveis e tudo que encontravam pela frente. Tomam de assalto, a casa do diretor, enfermeiros, médicos e servidores.
Na manhã seguinte, os noticiários de todas as mídias não paravam de falar: “Um grande motim ocorre no Instituto Penal de Menores na cidade de Lima Barreto, onde foram mortos três agentes e foram tomados como reféns o Diretor, enfermeiros, médicos e diversos funcionários. Os rebeldes querem falar com o Juiz para denunciarem os maus tratos, estupros, etc. que ocorriam no Instituto, com conhecimento das autoridades. Estão desaparecidos mais de 30 internos…”.
Os três seguem de carona, dormindo escondidos nas clareiras e campos ao lado da estrada. Comiam frutas, chupavam cana e vez em quando, moradores dos sítios que faziam divisa com a rodovia, um prato de comida ofereciam. Assim, após 30 dias, chegaram à Capital.
Na grande cidade, vivem nas ruas, dormem debaixo das marquises, tomam banho nos chafarizes e no inverno se aquecem nas saídas do ar quente do Metrô nas calçadas. Olho de Vidro outro caminho seguiu, seu irmão Leandrinho a pneumonia para sempre o levou.
Joãozinho de Deus das esquinas fez o seu mundo, lavando para-brisas, vendendo para algum espertalhão balas, artigos chineses e etc. Os meses demoram a passar, todavia para Joãozinho valia a pena esperar, uma vez que logo chegaria o tempo, época que mais gostava. A cidade toda se enfeitava, as luzes de todas as cores, quais vagalumes e as estrelas respondiam piscando no compasso do canto dos grilos.
Nas vitrines, José, Maria e o menino Jesus em seu bercinho de palha. Joãozinho passava horas vendo o pequeno presépio e uma agradável sensação lhe envolvia. No pequeno berço de palha, no lugar do menino Jesus, Joãozinho de Deus se via. E o que mais esperava era quando a Mãe Maria seu pequeno rosto beijava.
Guardara um pouquinho de dinheiro, o suficiente para comprar o menino Jesus no seu bercinho de palha. Mesmo nesta esta época do ano, quando as pessoas deveriam viver o maior ensinamento daquele que um dia revolucionou o mundo, ou seja, caridade, amar ao próximo como a si mesmo, Joãozinho ainda escutava quando de um carro se aproximava:
– Sai menino, vai sujar o meu carro!
Na véspera de Natal, à noite, Joãozinho se sente triste por estar sozinho e não ter um único amigo com quem conversar. Pelas pessoas que passam rápido com destino à suas casas, no fundo uma pequena inveja, o que nunca havia sentido em sua jovem vida; resolve brincar de toureiro com os carros que transitam na grande avenida.
A capa invisível, passos de balé, “verônicas” nos touros-carros, no meio da grande Avenida Paulista, Joãozinho como que tomado pelo desejo de fugir, a vida arrisca. Em seguida, como se estivesse sonhando, caminha sem cansar, descalço, até alcançar um grande condomínio, as casas iluminadas.
Deslumbrado para em frente a uma das casas. Sorrateiramente, pela janela seus olhos deparam.
Uma grande arvore de Natal toda enfeitada com luzes apagando e acendendo a lembrar de pequeninas estrelas. Mesa pronta, dezesseis lugares. Tem sede, a sua frente uma torneira, sua mãozinha em concha garimpa a fresca água. Quando uma grande e forte mão seu pequeno ombro segura. Tenta se desvencilhar e correr. Porém a firme mão o segura e uma suave e gentil voz se faz ouvir:
– Não tenhas medo, João de Deus, venha, entre, vamos cear!
O convite se faz no lar de José, Maria, seu filho e seus 12 amigos; banho quente, roupas novas, até sapatos. Um laudo jantar, presentes aos pés da grande árvore coberta de estrelinhas a brilhar. Depois, o aconchego do quarto com o teto coberto de carneirinhos brancos, pequenas nuvens e muitas estrelinhas piscando.
Em uma prece agradece o menino Jesus do presépio pelos presentes, sapatos, roupas, jantar, banho e cama quentinha, enfim, por tudo que havia recebido e um dia sonhado. E assim adormece.
Na grande Avenida Paulista, a garoa molha o asfalto. Os ponteiros do relógio marcam meia-noite, os sinos dobram. Estendido no piso, mortalha, do negro piche, o corpo franzino de um menino, seu braço estendido, em sua mão entreaberta “um pequeno Menino Jesus no seu bercinho de palha”.
A chuva para, as estrelas sorriem, os anjos entoam Noite Feliz, a família espera:
– Feliz Natal, João de Deus!
Rubens Muniz Junior
Rubens de Azevedo Muniz Junior, economista, administrador de empresa, trader aposentado, 82 anos de idade, nascido em Pirajuí, é poeta, cronista, contista, romancista e amante de boa leitura. Viajou e residiu, a trabalho, fora do Brasil.
VER PERFILISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Antes de continuar, esteja ciente de que o conteúdo discutido entre você e o profissional é estritamente confidencial. A Era Sideral não assume qualquer responsabilidade pela confidencialidade, segurança ou proteção do conteúdo discutido entre as partes. Ao clicar em CONTINUAR, você reconhece que tal interação é feita por sua própria conta e risco.
Aviso de conteúdo
É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita. O site não se responsabiliza pelas opiniões dos autores deste coletivo.
Veja Também
Amarelo: o conto sobre um cão que devolveu a esperança a um homem invisível
A emocionante história de um homem e seu cão Amarelo, companheiros inseparáveis que superaram a solidão das ruas com amor...
