Tatuagem: a pele como tela cósmica, ritual e a ciência da marca

A tatuagem é a busca humana pela eternidade. Da função médica de Ötzi aos ritos de passagem, a marca da pele tem vários significados.
Tatuagem: a pele como tela cósmica, ritual e a ciência da marca
Foto: Canva

A obsessão humana pela marca, sem dúvida, é tão antiga quanto a própria humanidade. Enquanto o indivíduo contemporâneo decide marcar a pele com símbolos que parecem meramente estéticos ou afetivos, na outra ponta da história, a prática cumpria funções muito mais cruas: medicina, status e, ironicamente, sobrevivência.

Primeiramente, o que se observa, desde os Alpes até a Polinésia, é que a tatuagem nunca agiu apenas como arte; sempre operou como um manifesto da alma no corpo.

Ötzi e a medicina da idade do cobre

O ponto de partida inevitável para esta reflexão reside na figura de Ötzi, o Homem do Gelo, mumificado há cerca de 5.300 anos e encontrado nos Alpes. Ele não atuava como um influencer neolítico, mas seu corpo conta uma história fascinante de ciência aplicada. O corpo de Ötzi exibe cerca de 61 tatuagens, todas elas formadas por grupos de linhas e pontos simples.

O que a ciência moderna, com seu ceticismo e precisão, revela é que estas marcas não estavam ali por acaso. Muitas das tatuagens de Ötzi se localizam em pontos que a acupuntura contemporânea reconhece como áreas de tratamento de dores e inflamações, notadamente nas costas e nas articulações.

Os antigos realizavam a técnica rudimentar — incisões preenchidas com pó de carvão ou fuligem — mas perseguiam uma intenção sofisticada. O sujeito não marcava a pele para decorar, mas para curar. A tatuagem, em sua origem mais remota, funcionava como um registro farmacêutico, permanente de um tratamento.

O corpo como passaporte e diário de bordo

O corpo, na visão primitiva, nunca age apenas como matéria. Ele funciona como um receptáculo de poder, um diário e, principalmente, um passaporte. Em civilizações egípcias e siberianas, múmias femininas exibem tatuagens complexas, muitas vezes associadas a símbolos de fertilidade, proteção durante o parto ou ritos de iniciação.

O sujeito acreditava que o desenho na pele não operava apenas como uma decoração para esta vida, mas como um mapa, ou uma chave, para a vida após a morte.

A marca tornava-se, assim, a prova visível de que o indivíduo havia atravessado uma fronteira — da infância para a maturidade, da doença para a cura, do mundo dos vivos para o mundo dos ancestrais. Por isso, a dor da aplicação operava inerente ao processo. Ela funcionava como uma espécie de purificação, um pagamento pela nova condição social ou espiritual.

O corpo marcado era um corpo validado pelo cosmos, um registro inegável da jornada realizada.

A ciência da permanência e o medo da efemeridade

A ciência da tatuagem é, em essência, a ciência da permanência. Quando a agulha injeta o pigmento na derme (a camada logo abaixo da epiderme), o corpo entende aquele material estranho como um invasor. Imediatamente, o sistema imunológico envia macrófagos — as células de defesa — para engolir as partículas de tinta e tentar removê-las.

O que os macrófagos não conseguem fazer é digerir o pigmento, deixando-o aprisionado. É justamente esse aprisionamento celular que garante a permanência da tatuagem. O corpo luta contra a marca, mas a marca vence e se torna parte do tecido. Neste nível biológico, a tatuagem representa o registro físico da luta entre a memória (a tinta) e o esquecimento (o macrófago).

A ironia contemporânea reside exatamente aqui. Se o antigo tatuado buscava a permanência para se proteger em rituais ou curar doenças, o indivíduo moderno, sedento por identidade, busca a permanência para combater a efemeridade da existência. Marcar a pele funciona como uma tentativa desesperada de ancorar o eu fugaz em um mundo onde tudo é descartável e passageiro.

A pessoa nutre a crença ingênua de que se a tinta ficar, a memória ou o significado também ficará. É a busca cética por uma eternidade simbólica, onde a única coisa garantida é a luta biológica para que essa marca não desapareça. O corpo tatuado, portanto, recusa-se a ser um rascunho. Ele emite uma declaração de que a história pessoal deve ser inscrita, e não apenas lembrada.

Por fim, a tinta funciona como o carvão da nossa caverna particular.

FAQ sobre tatuagem, ritual e ciência

Qual o significado das tatuagens de Ötzi, o homem do gelo?
A análise científica sugere que as tatuagens de Ötzi tinham uma função que ia além da estética. Encontradas em pontos que correspondem a práticas de acupuntura, acredita-se que as marcas eram usadas para fins terapêuticos e medicinais, tratando dores crônicas ou degenerativas. O sujeito estabelecia a tatuagem como uma das formas mais antigas de tratamento corporal registrado.

O que eram os ritos de passagem envolvendo a tatuagem?
Os ritos de passagem utilizavam a tatuagem como uma prova de coragem e um registro físico da mudança de status social ou espiritual do indivíduo. A dor operava inerente ao ritual e simbolizava a morte da identidade anterior e o nascimento de uma nova (ex: criança para adulto, guerreiro, sacerdote). A marca garantia que essa transição fosse reconhecida tanto pela comunidade quanto pelo mundo espiritual.

As tatuagens eram mais comuns em homens ou mulheres nas civilizações antigas?
Isso variava muito conforme a cultura. No Egito Antigo, por exemplo, múmias femininas tatuadas eram mais comuns. As marcas, muitas vezes em formas de pontos ou padrões geométricos, ligavam-se frequentemente à fertilidade e à proteção mágica durante a gravidez e o parto. Pois em outras culturas, como entre os Pazyryk da Sibéria, as tatuagens eram complexas e igualmente presentes em ambos os sexos, marcando posição social.

Por que a tatuagem é considerada permanente pela ciência?
A permanência resulta da resposta imunológica do corpo. A agulha deposita o pigmento na camada dérmica da pele. As células de defesa (macrófagos) tentam remover as partículas de tinta, mas, por serem grandes demais, o pigmento fica aprisionado. Esse aprisionamento das partículas pelos macrófagos na derme garante que a marca não seja absorvida ou eliminada facilmente.

Como a arqueologia consegue descobrir tatuagens em múmias muito antigas?
Atualmente, os arqueólogos utilizam tecnologias avançadas, como a luz infravermelha, para penetrar nas camadas de pele escurecida pelo tempo. Em alguns casos, a Fluorescência Estimulada por Laser (LSF) é empregada para revelar as densidades da tinta, o que permite visualizar desenhos intrincados que seriam invisíveis a olho nu, assim, revelando a arte corporal original.

Rogério Victorino

Jornalista especializado em entretenimento. Adora filmes, séries, decora diálogos, faz imitações e curte trilhas sonoras. Se arriscou pelo turismo, estilo de vida e gastronomia.

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