O Cachorro da Rua Botafogo

O que pode acontecer quando algo te impede de chegar em casa? Toda ameaça é um risco ou pode ser uma oportunidade?
Exu e o Cachorro da Rua Botafogo
Foto: Canva

O que eu vou contar agora faz muito tempo que aconteceu. Não existia nada disso dessas modernidades que vocês têm hoje em dia. Até mesmo a luz era rara em alguns cantos.

Gisele era a primeira mulher da família a ter o segundo grau completo. Na época era até outro nome.

Uma moça miúda, de pele bem escura. A mãe costureira e o pai porteiro de prédio no centro de São Paulo. Fizeram o impossível para que Gisele estudasse e pudesse cursar uma faculdade. Ela quis ser professora. Foi cursar pedagogia, com muito orgulho e vontade.

Acordava bem cedo, ia trabalhar na loja de calçados que ficava na Liberdade. Duas conduções para ir, mais uma para o curso, duas para voltar.

O pai, Seu Antônio, que chegava todos os dias do trabalho, tomava banho, jantava com Dona Neide e ficava cochilando no sofá para esperar a única filha.

Quando dava dez e quarenta da noite saía, subia a Rua Botafogo, na Zona Norte de São Paulo, e esperava a filha no ponto. De segunda a sexta essa rotina.

A filha sempre lhe dizia: “Pai, o senhor não precisa me esperar. Eu desço do ônibus e já desço a rua. Vai dormir”.

Mas ele nem abria discussão. Ignorava o pedido da filha e ficava lá no ponto todas as noites.

Mesmo cansado, com sono, gripado, nunca deixou de esperar. Não tinha como ter uma previsão de quando Gisele ia chegar. Ela saía do curso e corria para o ponto final, mas naquela época os coletivos atrasavam bem mais que hoje. Ele, sempre disposto a proteger sua menina. O orgulho do pai, seu bem mais precioso.

Em uma sexta, com a lua cheia no céu, eu sei, pois ela me contou, Gisele vinha no ônibus quase vazio. Desceu na Avenida Itaberaba, onde já ia logo em seguida para a Rua Botafogo, uma descida que saía já na Vila Penteado.

Era uma noite fria, ela com seu agasalho de segunda mão, uma saia até os joelhos, rodada. Procurou o pai com os olhos e não encontrou. Até o motorista perguntou:

– Oxe, moça! Cadê o pai?

– Não sei. Acho que hoje pegou no sono. Ele anda bem cansado. Mas vou rapidinho aqui.

O motorista fechou a porta e saiu.

Gisele ficou preocupada. Mais de ano e o pai nunca deixou de esperar no ponto. Será que aconteceu algo? O pai já não era mais um jovem. Já batia na casa dos sessenta. Mas pensou que era melhor não pensar nisso. Quando chegasse em casa saberia. Não eram nem cinco minutos caminhando.

Ao seguir pela avenida e virando à direita para entrar em sua rua, um cachorro preto e marrom, grande, com o focinho longo e orelhas pontudas e para cima, apareceu no meio do caminho. Ela nem viu de onde ele saiu. Ela sempre gostou de animais, conhecia todos os bichos da rua. Os vizinhos sempre diziam que a Gi era a pessoa que mais brincava com os cachorros e gatos da rua. Sempre encontrava um minuto para fazer um carinho, afagar um gato que vinha para se roçar em suas pernas.

Mas esse ela não conhecia. Ele tinha cara de bravo, ficou de pé, no meio da rua, olhando para Gisele. Ela estancou. Não sentiu medo de início, mas esperou ele agir. E nada aconteceu.

Ela olhando para ele, ele olhando de volta. “O que será que ele quer?”, pensou Gisele. E deu um passo para frente. O cachorro deu um passo na mesma direção.

Parou de novo. Não sabia se ele iria atacar.

Com apreensão, ela deu mais dois passos e o cachorro também deu os seus dois. Mais três passos dela e eles se encontrariam na calçada, no mesmo lugar. Quando ela tentou dar mais um passo, ele rosnou. Gisele sentiu o medo pela primeira vez. Aquele frio na espinha. O rosnado do cão era alto, forte e mostrava que ele agiria se ela continuasse a andar.

Pensando no que poderia fazer, olhou para frente na rua, procurando ver se seu pai subia para se encontrar com ela. E nada. Nem sinal de seu pai.

Ela tentou avançar mais um pouco, mas o cachorro continuou rosnando. Procurou na bolsa um guarda-chuvas e encontrou a sombrinha. Balançou na frente do corpo, mostrando para o cachorro que estava com algo na mão. Foi pior.

Ele latiu ferozmente e andou em sua direção. Gisele se assustou, não esperava aquela reação. Uma sensação de perigo tomou seu corpo. Sentiu um frio na espinha, deu dois passos para trás e pensou: “Agora que é. Vou ter que ir pela rua de trás, subir essa avenida, descer pela outra rua e voltar a subir pela minha rua. Por causa de um cachorro?”.

Ela tentou por mais uma vez seguir em direção a sua casa. Não queria dar aquela a volta, poderia ser até mais perigoso. Cresceu naquela rua, todos a conheciam.

E mais uma vez o latido alto e forte do cachorro. Desta vez, ele até mostrou todos os dentes. Latiu duas vezes, olhando nos olhos dela.

Quando ela ia tentar mais uma vez ir em frente, ouviu passos atrás de si. Virou o corpo com tudo, para colar as costas na parede, e viu um homem negro, forte, com a barba enorme e careca. Ele estava todo de preto. Calça social e camisa. No pescoço, corrente de ouro. Tudo bem alinhado. Fumava um cigarro que estava na boca, sem o auxílio da mão. Caminhava em direção à rua que ela queria seguir.

Ao vê-lo passando de boa, sem nenhum problema, ela tentou seguir o moço. Quando começou a caminhar na mesma direção, o cachorro voltou a latir para ela:

– Moça, acho que ele não quer que você siga por aqui. Porque não dá a volta, como você mesmo pensou? Pode ser melhor.

O homem disse olhando de lado, sem virar o corpo na direção da Gisele. Deu uma gargalhada e desceu pela rua, entrando na parte escura, onde a iluminação pública estava com o poste apagado.

Ela ficou olhando. O cachorro olhando para ela e o pensamento: “Como ele sabe no que pensei?”. E resolveu seguir o conselho.

Caminhou em frente na avenida, com o cachorro seguindo seus passos com o olhar, mas sem deixar a rua. Quando ela o perdeu de vista, andou mais rápido, estava com medo dele ir contra ela.

Desceu a Rua Nogueira correndo. Chegando na esquina da rua de sua casa, virou com tudo e nem olhou para cima. Seu portão já estava à sua direita. Entrou, abriu a porta e seu velho pai estava deitado, dormindo calmamente no sofá:

– Papai? Tudo bem com o senhor?

Ele acordou no susto:

– Filha, que horas são? Eu perdi a hora, meu amor. Está tudo bem? Desculpe o pai, por favor.

– Para, pai. Tudo bem, não precisa pedir desculpas. O senhor estava cansado. Só tive que dar a volta pela rua de trás, um cachorro enorme não me deixou descer pela nossa rua.

– Onde isso?

– Lá na esquina. Ele era enorme. Nunca o vi por aí.

– Meu Deus. Vou ver isso.

Disse e já ia em direção à porta para ver o cachorro na rua, quando um grito de dor tomou conta de tudo. Um homem gritava de dor e outro gritava: “Larga ele, larga! Seu maldito!”.

Uma gargalhada tomou conta da rua, como o primeiro grito de dor. Vários latidos também. Foi aí que o homem que pedia para soltarem o outro começou a gritar igual. Um urro de dor.

Gisele grudou o pai pelo braço, já impedindo-o de sair:

– Filha, o cachorro pode estar atacando alguém. Vou lá ajudar.

– Não, pai. Por favor. Não vá. Pode ser perigoso.

– Mas filha…

Nisso, Dona Neide acordou e veio para a sala para ver o que acontecia. Os gritos de dor ainda ocorriam. Parecia uma tortura, um castigo para condenados.

Dona Neide e Gisele não deixaram Seu Antônio sair. Ficaram pela sala, ouvindo os gritos de dor. Para eles seria impossível pedir uma viatura da polícia. Não tinham telefone em casa, poucas casas tinham. Naquela rua mesmo, nenhuma.

De repente, o silêncio. Não se escutava mais nada. Seu Antônio olhou pela janela, não conseguiu ver nada. A rua estava escura. Maldito poste que parou de funcionar.

Ficaram ali, sentados, olhando um para o outro. Dona Neide correu buscar um terço, que ficava sempre em sua cama, ao lado da santinha. E começou uma oração de proteção, que aprendeu com a vó, que tinha sido escrava e teve sua alforria ainda jovem. Pediu para filha ir jantar e se banhar, pois a manhã já vinha e ela precisava ir trabalhar.

Gisele foi dormir pensando no que poderia ter acontecido se ela fosse em frente. Se tivesse enfrentado o cachorro. Pegou no sono pensando nisso.

Pela manhã, o Sol ainda nem tinha se levantado de todo, e já se ouvia um burburinho na rua. Pessoas falando, som de carros. Não era comum nesse horário tudo isso.

Ao sair com o pai para o portão, avistou um fusca da PM, que já isolava o local junto com dois soldados.

Foram até a frente da casa e seu Chico, que sempre estava pela rua, aposentado, lia seu jornal no quintal enquanto cuidava da vida alheia. Ele chamou Seu Antônio:

– Ô, velho Antônio, o senhor ouviu a gritaria da noite? Parecia que estavam matando. E não é que estavam?

Ao passar pelo Seu Chico, Gisele avistou dois corpos estendidos no chão. Com marcas de sangue nas genitálias. Dois homens, um de bigode, mais gordo e pele morena. O outro era de um branco alvejado, que parecia cera. Os dois com marcas de cortes nas calças. O pescoço também apresentava marcas, mas eram de mãos. Foram sufocados.

Um dos policiais respondia a uma mulher: “Ah, esses são dois conhecidos. Estupradores. A gente estava na caça deles. Melhor assim, poderiam ter feito mal para alguma moça”.

Gisele se assustou, virou os olhos. Foi quando viu, mais para baixo, o homem vestido de preto e o cachorro ao seu lado, recebendo carinho em suas orelhas. Ele fumava o mesmo cigarro que antes. Deu uma gargalhada e partiu com o cão ao seu lado.

Ton Rodrigues

Estudante de jornalismo, pai de 3 crianças e pintor amador nas horas vagas. Leitor voraz e apaixonado pela música, mas nunca correspondido. Nascido em terreiro de Umbanda, estudioso do Candomblé.

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