O Cavaleiro de Ogum: um conto sobre fé, justiça e proteção

Camargo, sargento da PM e filho de Ogum, enfrenta o crime guiado por suas entidades em uma missão onde fé e coragem se entrelaçam.
O Cavaleiro de Ogum: um conto sobre fé, justiça e proteção
Foto: O Cavaleiro de Ogum: um conto sobre fé, justiça e proteção / DALL-E

Camargo era da Polícia Militar fazia uns dez anos. Tinha a patente de segundo sargento e gostava demais da profissão que escolheu. Criado em terreiro de Umbanda, Camargo era sempre visto com dois fios de santo no pescoço, proteção de Pai Ogum e de Exu, que nunca lhe abandonaram.

Nesses anos todos de batalhão enfrentou diversas ocorrências, umas mais perigosas, outras mais comuns. Sempre que estava de folga, na sexta-feira, ia para o terreiro tocar seu atabaque na casa de sua vó, Dona Aderlina, Mãe de Santo, feita no candomblé da Bahia, mas que optou por trabalhar com suas entidades de Umbanda pelo amor que recebeu delas. Lá, Camargo ia de branco, batia cabeça nos pés de sua vó e no congar.

Os irmãos de santo admiravam o Ogã, alabê de Ogum, que era humilde e tratava todos com respeito e o policial que era sempre justo e honrado.

Seus companheiros de farda não gostavam muito de sua fé. Diziam que era errada, que ele precisava ir para a igreja. Ele ignorava todos. Sabia de sua fé e de tudo que obteve com ela. Que cada um fosse para onde quisesse, mas ele nunca iria abandonar o terreiro onde foi iniciado. O terreiro onde aprendeu que se é feito com amor, com caridade e bondade, não existe o mal, só as forças do bem.

Ele nunca foi afrontado por seus subordinados, e nunca deu chance para os de cima lhe faltarem com respeito na corporação. Todos sabiam que o sargento Camargo era muito sério com o seu serviço e com sua fé.

A história que vou te contar aconteceu quando ele estava de serviço no turno da noite. Era uma sexta-feira, bem escura, com a lua encoberta por nuvens, o que deixava a noite mais sombria.

Ele estava na viatura com um soldado dirigindo, ele no banco do carona e um cabo no banco de trás para apoio. Estavam em ronda na madrugada quando avistaram dois homens que ao ver a viatura voltaram para o beco de onde saiam em disparada. O trio percebeu logo que poderiam ser dois criminosos. Um era branco, alto e usava uma camisa amarela, o outro era negro, baixo e usava um moletom cinza. Estavam na entrada de uma favela, perto do hospital Cachoeirinha. Entraram correndo pelo beco, que dava perto de uma quadra de futebol.

O motorista jogou a viatura para perto da entrada e ficou dentro dela com a arma em punho. Camargo e o cabo desembarcaram e correram em direção ao beco, com lanternas e pistolas em mão.

A iluminação no beco era precária. A lua encoberta, casas com as luzes apagadas, só uma ou outra acessa, mais na parte de cima das casas do que no térreo.

A dupla seguiu com cautela, procurando em todos os lugares. Cada passo era dado com atenção, olhando os vãos das casas, todas construídas de forma irregular, o que deixa tudo sem padrão.

Camargo estava concentrado, mas não esqueceu de pedir por sua proteção e do colega logo atrás. Pediu para que Exu lhe guiasse os passos e que Ogum lhes protegesse de todo mal.

O cabo lhe deu sinal, tinha uma entrada logo à esquerda, que dava para um beco mais escuro, e o corredor a frente que seguia para mais dentro da comunidade. Eles decidiram seguir pela esquerda. Foram de forma tática pelo beco, a única luz acessa era a da lanterna dos dois. Ouviram no rádio o soldado na viatura pedindo apoio e o cabo completou informando que estavam entrando atrás dos dois suspeitos.

O beco fazia uma curva cada vez mais acentuada para a direita e começava a ficar inclinado, numa descida leve. Os postes de fiação, canos abertos e portas fechadas era o que viam, e cachorros latindo era o que ouviam. Camargo sabia que estava no caminho certo. Ele tinha esse sexto sentido, que lhe dava uma segurança no que fazia.

Até aquela parte as casas eram de alvenaria, já com iluminação e água encanada, a favela do Boi Malhado era antiga, então já tinha virado uma comunidade mais avançada. Muitas pessoas de bem, trabalhadores no local, mas o crime e o criminoso sempre se embrenham em tudo. Se contamina os políticos, não vai entrar na comunidade?

Camargo percebeu o chão mudar. O beco que era cimentado agora já era barro. A iluminação piorou, pois mais à frente as casas já eram de madeira, barracos.

Camargo olhou para o cabo e percebeu que estava bem acompanhado. O parceiro não ia se amedrontar. Indicou com a mão para ele se posicionar na outra parede, dando cobertura, que ele iria avançar.

E isso mudou tudo. Ele sentiu em seu peito um calor. Pôs a mão para verificar e sentiu o coração acelerar, mudando até sua respiração. Uma energia tomou conta de Camargo, que só sentia esse poder quando estava atrás de seu atabaque no terreiro.

Avançou mais um pouco, encostou na parede de madeira de um dos barracos e iluminou o local. O terreno era de barro, várias marcas de pés, não dava para saber se eram dos suspeitos. Ao levantar um pouco mais sua lanterna para ver mais à frente, ouviu – “Abaixa!” – e como instinto se abaixou a tempo de ouvir o tiro e perceber o projétil acertar onde ele estava. Justamente na região do peito, onde sentiu o calor. Ele não sabia se foi o cabo que gritou ou se foi outra voz. Não deu para definir na adrenalina.

O cabo deu dois disparos para o local de onde suspeitou ouvir o tiro quando Camargo pediu:

– Não atira. A gente não sabe quem mais tá lá.

Não houve mais disparos por parte do cabo, mas houveram mais quatro tiros vindos da escuridão. Todos acertaram a parede onde ele estava, mas acima de sua cabeça.

Ele ia avançar mais um pouco e a voz, mais uma vez: – “Calma, ele ainda está lá.” – Camargo parou, olhou pro Cabo e viu que ele estava concentrado no ponto mais a frente, procurando de onde vieram os disparos. Camargo desconfiou, nunca teve essa experiência espiritual de ouvir suas entidades. Sentia a energia, mas nunca teve esse dom de ouvi-las.

Firmou o corpo pra frente para olhar e a voz: – Vai, pela esquerda.” – Camargo obedeceu de pronto. O cabo acompanhando sua investida, os dois avançando com muito cuidado. Camargo pediu em pensamento: – “Pai, se for de sua vontade, me guie. Preciso proteger meu companheiro e as pessoas. Guie meus passos nessa noite. Patakori, Ogum. Laroyê, Exu.”

A tensão era grande. O medo de se ferir era menor do que de ferir pessoas inocentes, ou de que seu companheiro se ferisse, afinal era de responsabilidade dele a patrulha.

Partiu mais a fundo, observando o terreno, avançando de forma tática. Era um campo, com casas de madeira, que formava um grande labirinto.

Ele sabia que tinha uma coisa errada, e já esperava por isso. Nem todos ali eram criminosos, ele tinha isso em mente e no coração. Tinha na memória crescer na comunidade, sempre lutando para conseguir crescer na vida e dar uma vida melhor pra sua vó, que lhe criou com tanto amor.

Ao chegar mais perto de onde veio o disparo, Camargo olhou pro fim do terreno, viu o homem alto de camisa amarela saindo de uma cobertura e levantando a arma. O disparo foi logo em seguida, mas não o atingiu. O projétil passou por ele, por cima do ombro. Ele se ajoelhou no chão e deu um único tiro, acertando o peito do atirador, fazendo seu corpo girar, derrubando a arma e cair no chão. Camargo avançou mais uma vez, se fosse só os dois, o outro estaria perto. Ao chegar perto do corpo caído, viu que ele continuava vivo, respirando com dificuldade. O cabo avisou a situação pelo rádio, pegou a arma e colocou junto a cintura.

No rádio houve a resposta do soldado da viatura, informando que o reforço já tinha chegado, estavam entrando na comunidade.

Camargo pediu para o cabo ficar junto ao homem no chão e avançou. Era um trecho estreito, com casas de madeira do seu lado direito e um uma pequena ribanceira, com o córrego do lado esquerdo, lá embaixo.

Com a arma empunhada, apoiada com a mão esquerda da lanterna, o sargento Camargo não parou. Tinha que continuar investigando para saber onde estava o outro.

Quando passou por uma porta semiaberta, virou o corpo para averiguar e ouviu: “O braço, passo para trás.”  No mesmo instante Camargo deu um passo para trás, baixou o braço para abrir espaço e viu, com a luz da lanterna, o facão que passou cortando o ar exatamente onde seu braço estivera outrora.

Outro rapaz, um terceiro, branco, com uma tatuagem de serpente no pescoço, veio para cima, levantando mais uma vez o facão, tentando alcançar o pescoço do policial. Camargo deu dois disparos. Um acertou o braço estendido e o outro no pescoço, onde estava a tatuagem. O corpo caiu mole, já sem vida. E Camargo sentiu que estava perto.

A voz disse: “É aí. Ele está armado. Cuidado.”

Não sentiu medo. Sabia que estava protegido por Ogum e por Exu, os dois que não lhe faltavam nunca.

Invadiu o barraco, virou-se para a esquerda e já viu o outro rapaz, de moletom, com a arma apontada na cabeça de uma moça. Ela estava na frente dele, a mão direita segurando a arma contra a têmpora dela, a esquerda segurando a jaqueta.

– Saí, filho da puta. Eu mato essa vadia.

– Segura, cara. Se você baixar a arma e soltar ela a gente conversa. Papo reto.

– Você matou o meu amigo, cuzão.

– Ele tentou me acertar. Você sabe como é a vida. Tudo tem uma reação. Solta ela, de boa. Vamos conversar.

Ele segurava a lanterna em direção aos dois. Sabia que em qualquer momento seria o crucial, a única chance que teria de salvar a mulher que chorava.

O rapaz se moveu, empurrou o corpo da mulher para frente e moveu a arma na direção do sargento, que ao perceber a ação ouviu mais uma vez a voz que lhe acudia: “- Lanterna, agora. Dispara só uma vez.” – Tudo isso na velocidade da luz, mirou a lanterna no olho do homem o cegando momentaneamente, deu um disparo só, acertando o ombro do agressor, que soltou a arma e a mulher. O criminoso se ajoelhou tentando pegar a arma que estava no chão. Camargo deu um salto, chutou o peito do sequestrador, que caiu de costas com um barulho seco e já foi ajoelhando para algema-lo.

A moça se atirou em outro canto, gritando e pedindo socorro. Isso atraiu o pessoal de apoio, que atenderam o chamado via rádio.

Com a situação controlada, viram que a moça era alvo de um sequestro relâmpago, onde os dois primeiros vistos na rua saiam para ir sacar o dinheiro nos caixas eletrônicos e voltar para liberta-la.

Ela disse que o que ficou tentou abusar dela, mas quando os dois voltaram correndo a situação mudara.

Todos foram encaminhados e tratados. O comandante do batalhão deu os parabéns a equipe, em especial ao Camargo, que avançou até resolver a situação.

Quando saiam da comunidade, o sargento viu junto a viatura, um homem grande, negro, com sua espada na mão. Ele usava um capacete com um penacho azul e vermelho. Em seu peito o fio de contas igual ao de Camargo. Ele sabia. Tinha certeza que fora Ogum, seu pai de cabeça, que o protegeu e guiou na ação.

– Patakori, meu pai. Saravá seu Ogum – Camargo disse em voz alta, sem se importar com o olhar dos companheiros.

Ton Rodrigues

Estudante de jornalismo, pai de 3 crianças e pintor amador nas horas vagas. Leitor voraz e apaixonado pela música, mas nunca correspondido. Nascido em terreiro de Umbanda, estudioso do Candomblé.

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