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Sem a segunda porta: um conto sobre a promessa de Exu
Quando Ribeiro chegou à Umbanda, ele tinha dezoito anos. Recém-saído da FEBEM, após ser preso por furto, estava determinado a mudar de vida. Não queria mais voltar à prisão e precisava de toda ajuda possível.
Foi em um terreiro onde caridade e acolhimento eram reais, sem julgamentos. Lá, todos eram bem-vindos, especialmente aqueles em necessidade. Ele começou a frequentar as giras, tomando seu passe e, aos poucos, se enturmando. Tinha certa timidez, ou talvez vergonha de sua história, mas logo percebeu que aquele era um lugar de amparo, não de acusação.
Com o tempo, Ribeiro decidiu vestir o branco e se tornar filho da casa. Foi a primeira vez que sentiu o calor de uma família de verdade, algo que ele nunca havia experimentado antes. Entretanto, a vida ainda era difícil. Nos anos 80, recém-saído da FEBEM e sem experiência, arrumar trabalho parecia impossível. Nenhuma porta se abria, e a sensação de desespero começou a dominá-lo.
Seu desenvolvimento espiritual também avançava lentamente. Suas entidades não incorporavam como deveriam, e ele não sabia como progredir. Um dia, ao conversar com a entidade de um baiano que incorporava na Mãe de Santo, planejaram um trabalho espiritual para abrir seus caminhos, melhorar sua incorporação e atrair o emprego que tanto precisava.
Mas havia um problema: Ribeiro não tinha dinheiro para o trabalho. No entanto, os filhos da casa se uniram para cobrir os custos. Ele não estava mais sozinho.
Primeiro, fariam uma entrega no cemitério, oferecendo para Exu, senhor dos caminhos. Era ele quem deveria ser saudado primeiro. A oferta seria feita no cemitério da Cachoeirinha, com Ribeiro, o Pai de Santo e mais dois irmãos da casa, todos a bordo de uma velha Kombi. Era quase uma hora da manhã, e naquela época, oferendas em cemitérios eram ainda mais perseguidas do que hoje. A polícia vigiava de perto, sempre pronta para reprimir as religiões de matriz africana.
Chegando ao cemitério, o grupo entrou por uma abertura no muro e seguiu até o cruzeiro. Lá, fariam uma oferenda para as almas, pedindo que liberassem os caminhos de Ribeiro. Com sacos de velas, cachaça e uma farofa para a oferenda, eles acenderam as velas e entoaram pontos para Exu e as almas.
— Ribeiro, pega essa vela preta, leva o charuto e a cachaça e firma tudo naquela árvore grande ali — instruiu o Pai de Santo, apontando para uma árvore mais afastada.
— Sozinho? — perguntou Ribeiro, nervoso.
— Sim, o trabalho é seu. Você precisa se conectar com suas entidades.
Ribeiro foi em direção à árvore com o coração batendo forte. Nunca estivera sozinho em um cemitério, especialmente àquela hora. Enquanto caminhava, pedia proteção a Exu, que lhe mostrasse o caminho e lhe desse firmeza. Chegando ao jacarandá, ajoelhou-se e preparou os elementos da oferenda. No entanto, ao riscar o fósforo, a vela tombou.
Repetiu o processo, mas, mais uma vez, a vela caiu. A cada tentativa fracassada, seu desespero aumentava. Finalmente, gritou para o Pai de Santo:
— Pai, a vela não quer ficar em pé!
O Pai de Santo riu baixinho e respondeu:
— Firma a cabeça, pede com fé. Vai dar certo.
Determinado a fazer tudo corretamente, Ribeiro acendeu o fósforo mais uma vez. Dessa vez, a vela permaneceu firme. Ele acendeu o pavio e viu a chama crescer, vibrando em tons de azul, amarelo e vermelho. Com a vela acesa, fechou os olhos e pediu a Exu que abrisse seus caminhos.
De repente, ele sentiu uma presença atrás de si. Achou que fosse o Pai de Santo, mas não tinha medo. Com os olhos ainda fechados, ouviu uma voz grave:
— Meu nome é Tranca-Rua, seu Exu e amigo.
Ribeiro se virou, assustado, e viu um homem negro, alto, vestido de preto e com uma cartola. O homem segurava um charuto aceso e uma bengala.
— Pode ir atrás do seu emprego. Ele virá na primeira porta. Filho meu não precisa bater na segunda.
Sem pensar, Ribeiro correu em direção à saída do cemitério, pulando covas e lápides, sem parar até se jogar dentro da Kombi, tremendo de medo. O Pai de Santo, ao voltar, sorriu.
— Não precisa ter medo, ele estava com você o tempo todo — disse o Pai de Santo. — Só precisava dar espaço para ele se mostrar.
Na primeira segunda-feira após o trabalho, Ribeiro saiu cedo à procura de emprego. Andando pelo bairro, viu uma placa na frente da oficina de Julião: “Precisa-se de ajudante de mecânico”. E foi ali que ele ficou. Como prometido, não precisou bater em uma segunda porta.
Ton Rodrigues
Estudante de jornalismo, pai de 3 crianças e pintor amador nas horas vagas. Leitor voraz e apaixonado pela música, mas nunca correspondido. Nascido em terreiro de Umbanda, estudioso do Candomblé.
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