Cristofascismo: da teologia radical de Dorothee Sölle à ameaça contemporânea

Entenda o cristofascismo, desde as críticas de Dorothee Sölle às igrejas cúmplices do nazismo até sua atual ameaça ao mundo moderno.
Cristofascismo: da teologia radical de Dorothee Sölle à ameaça contemporânea
Foto: Canva

O cristofascismo é um conceito que mistura um dos pilares mais sagrados da sociedade ocidental – o cristianismo – com uma ideologia que, paradoxalmente, foi central no estabelecimento de regimes totalitários e autoritários ao longo do século XX. Essa fusão macabra não surge de uma leitura simplista do cristianismo, mas de uma manipulação ideológica que transforma a fé em uma ferramenta para a dominação política. Embora o termo possa soar estranho ou até mesmo exótico para muitos, suas raízes e consequências são profundas e persistem nas disputas culturais e políticas do presente.

A origem do termo: Dorothee Sölle e sua crítica à cumplicidade das igrejas

A primeira menção sistemática ao conceito de “cristofascismo” vem da teóloga alemã Dorothee Sölle, uma das vozes mais contundentes na crítica à relação entre o cristianismo e o autoritarismo. Nos anos 1970 e 1980, Sölle se tornou conhecida por sua crítica radical às igrejas que, no contexto da Europa pós-guerra, continuavam a se aliar a regimes que defendiam políticas imperialistas e fascistas.

Para Sölle, a Igreja não só se distanciava da mensagem cristã original de amor e justiça, mas também se tornava cúmplice ativa em sistemas de opressão. Sua análise se concentrava especialmente nas igrejas que haviam sido complacentes ou até mesmo apoiado o nazismo na Alemanha e o imperialismo ocidental, especialmente após a Segunda Guerra Mundial. A teóloga alemã não apenas denunciava essas alianças históricas, mas também alertava sobre o uso do cristianismo por líderes políticos que distorciam a fé para justificar regimes totalitários.

A noção de cristofascismo, portanto, não surge de um distanciamento da teologia, mas de uma análise crítica do modo como a religião foi instrumentalizada para fins de controle social e político. Para Sölle, o cristianismo radical, focado na compaixão e na ação transformadora, era antitético à instrumentalização da fé para fins autoritários.

O cristianismo e os regimes totalitários: uma relação histórica e incômoda

A história das igrejas e sua relação com regimes totalitários e fascistas é extensa e, muitas vezes, incômoda. Nos anos de ascensão do fascismo e do nazismo na Europa, por exemplo, a Igreja Católica em diversos países, particularmente na Alemanha, teve uma relação ambígua com o regime de Hitler. Parte da hierarquia eclesiástica no Vaticano, como o caso da Concordata entre o Papa Pio XI e o regime nazista, demonstrou uma colaboração explícita, ou ao menos uma aceitação tácita, com o regime de Hitler. Na Espanha, a Igreja Católica foi um dos pilares do franquismo, oferecendo não apenas suporte religioso, mas também legitimação moral e ideológica.

Em Portugal, o regime salazarista teve uma estreita ligação com a Igreja Católica, que desempenhou um papel significativo no apoio ao regime autoritário de Estado Novo. Essa relação entre o cristianismo e os regimes autoritários não se limitava apenas a questões políticas, mas também envolvia a perpetuação de uma moral rígida e conservadora, muitas vezes usada para justificar a opressão e a repressão social.

De maneira similar, o movimento Deutsche Christen na Alemanha Nazista visava criar uma versão do cristianismo que se alinhasse aos ideais nazistas. Este movimento, liderado por figuras que se afastavam da teologia tradicional, buscava uma fusão entre o cristianismo e a ideologia nazista, promovendo um cristianismo de “sangue e solo” que rejeitava a tradição judaica e qualquer elemento da Igreja que fosse considerado incompatível com os ideais arianos.

Cristofascismo hoje: uma ameaça contemporânea?

Embora o termo tenha sido cunhado há mais de 40 anos, as sementes do cristofascismo ainda estão presentes nas dinâmicas políticas e sociais contemporâneas. No Brasil e em outros lugares, movimentos políticos e religiosos têm se aliado para promover uma agenda autoritária, usando o cristianismo como um instrumento para reforçar políticas de exclusão e repressão. Líderes políticos de tendências populistas e conservadoras, por exemplo, têm utilizado símbolos e linguagem cristã para justificar políticas que visam restringir liberdades civis, marginalizar minorias e combater direitos reprodutivos.

O cristofascismo não é uma ideologia fixa, mas uma malha complexa e fluida, onde a fé religiosa se mistura com um apelo autoritário e nacionalista. Embora a maioria dos cristãos sinceros rejeite qualquer forma de fascismo, o uso da religião como escudo ideológico para práticas autoritárias continua a ser um desafio significativo. O que as palavras de Sölle e o estudo histórico nos mostram é que a fé pode ser tanto uma força de libertação quanto uma ferramenta de dominação, dependendo de quem a interpreta e como a utiliza.

Conclusão: uma reflexão sobre a complexidade da fé e do poder

A discussão sobre o cristofascismo nos força a refletir sobre a dualidade do cristianismo como uma religião de liberdade e compaixão, mas também como uma ideologia passível de ser distorcida e utilizada para fins opressores. O alerta de Dorothee Sölle permanece relevante em um mundo onde, frequentemente, a religião é manipulada por poderes políticos em busca de controle e dominação.

Em suma, este é um momento para a reflexão sobre como a fé deve ser vivida: como uma prática libertadora e humanitária ou como uma ferramenta de dominação ideológica. O cristianismo, como qualquer outra grande tradição religiosa, carrega consigo uma enorme responsabilidade ética e histórica. Em tempos de polarização e incerteza, o verdadeiro desafio é distinguir entre uma religião que liberta e uma religião que aprisiona.

FAQ sobre cristofascismo

O que caracteriza o cristofascismo e como ele se manifesta na política?
O cristofascismo é a fusão entre um cristianismo radical e práticas políticas autoritárias. Ele se manifesta na política através da instrumentalização da fé para justificar regimes conservadores e políticas repressivas. Ao distorcer os ensinamentos cristãos, esse movimento busca estabelecer um domínio cristão sobre a sociedade e as leis, utilizando uma retórica moralista para marginalizar adversários políticos e sociais, como progressistas, minorias e ativistas.

Como Dorothee Sölle influenciou a compreensão do cristofascismo?
Dorothee Sölle foi uma teóloga que denunciou a cumplicidade de certas igrejas com regimes autoritários, como o nazismo. Ela introduziu a ideia de que o cristianismo poderia ser manipulado para fins de poder político, alertando sobre os perigos dessa instrumentalização da fé. Sua crítica se centrava na transformação da religião em uma ferramenta de dominação, o que mais tarde seria compreendido como cristofascismo.

Qual a relação entre a Igreja e regimes autoritários ao longo da história?
Historicamente, algumas facções dentro da Igreja Católica se alinharam com regimes autoritários, como o franquismo na Espanha e o nazismo na Alemanha. A Igreja, em diversas ocasiões, não apenas aceitou essas alianças, mas também as legitimizou moralmente, fornecendo respaldo religioso às políticas repressivas e imperialistas desses regimes. Esse apoio institucional contribuiu para a manutenção do poder de tais governos, mostrando como a fé pode ser manipulada em contextos políticos.

Como o cristofascismo é utilizado para criar uma agenda política ultraconservadora?
O cristofascismo utiliza questões morais, como o antiaborto e a defesa da “família tradicional”, para mobilizar eleitorados e criar uma base de apoio entre os conservadores. Ao associar essas questões a uma “batalha espiritual” entre o bem e o mal, o movimento polariza a sociedade, utilizando uma retórica moralista para justificar políticas autoritárias que buscam suprimir direitos civis e sociais das minorias. A religião é, assim, usada como uma ferramenta estratégica para consolidar um poder político e cultural.

Quais são os riscos e impactos do cristofascismo na sociedade contemporânea?
Os riscos do cristofascismo incluem a intensificação da polarização social, a redução de direitos civis e a marginalização de grupos vulneráveis, como mulheres, LGBTQIA+, e minorias étnicas. A manipulação da fé para fins políticos pode enfraquecer a democracia e os direitos humanos, ao criar uma cultura de medo e intolerância. Além disso, a imposição de uma agenda moral religiosa pode resultar na exclusão de qualquer pensamento ou prática que não se alinhe com essa visão conservadora, limitando a liberdade individual e o debate plural.

Rogério Victorino

Jornalista especializado em entretenimento. Adora filmes, séries, decora diálogos, faz imitações e curte trilhas sonoras. Se arriscou pelo turismo, estilo de vida e gastronomia.

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