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Hipersensibilidade sensorial ou transtorno do espectro autista: como a escuta clínica pode mudar o diagnóstico
Na prática clínica com crianças, é comum que as famílias cheguem com suspeitas já definidas sobre os comportamentos dos filhos. Em muitos casos, antes mesmo do primeiro atendimento, os pais já trazem rótulos como “me disseram que ele está no TEA”, “falaram que ele tem TDAH”, ou mais recentemente, “ele é hipersensível”.
Pois esse movimento, embora natural, muitas vezes não permite espaço para uma escuta profunda. Isso se deve à pressa em encontrar explicações rápidas para comportamentos que são, na maioria das vezes, multifacetados. O que é ainda mais comum é o risco de engessar o atendimento, desse modo, fechando a mente para outras possibilidades.
A importância da escuta sem rótulos
A hipersensibilidade sensorial pode sim gerar reações intensas em crianças: um incômodo com sons, com texturas, ou com cheiros. No entanto, essas reações não devem ser confundidas com um diagnóstico fechado, como o autismo. A diferença crucial é que não deve se prender a um rótulo logo de início. Ao contrário, ela deve adotar a escuta cuidadosa e o acompanhamento atento do comportamento da criança.
Por exemplo, uma criança que demonstra uma aversão ao barulho ou se recusa a comer determinados alimentos pode, na verdade, estar sinalizando um desconforto sensorial, mas isso não define um diagnóstico definitivo. O papel do fonoaudiólogo aqui é “escutar sem rótulo”. Cada comportamento, portanto, deve ser parte de um quebra-cabeça que exige tempo para ser compreendido.
O risco de um olhar viciado
Uma vez que a família assume um diagnóstico, por mais que seja bem-intencionada, ela tende a investir toda a sua energia na busca por soluções apenas dentro daquela perspectiva. Vi muitos casos em que o diagnóstico de autismo, por exemplo, levou terapeutas a adaptar o plano de intervenção de maneira inadequada, sem considerar outras possibilidades.
Quando isso acontece, a criança perde oportunidades de vivenciar situações que poderiam ser enriquecedoras para seu desenvolvimento.
Os diagnósticos, embora necessários, nunca devem ser a base única para a intervenção. O ponto de partida deve ser sempre a escuta clínica, a relação que é estabelecida com a criança, e a observação das suas experiências no brincar.
O impacto da hipersensibilidade no desenvolvimento da linguagem
Crianças que apresentam alterações no processamento sensorial podem, de fato, ter dificuldades no desenvolvimento da linguagem. No entanto, é importante não reduzi-las a um diagnóstico único. A hipersensibilidade sensorial pode, sim, gerar impactos nas interações sociais, na exploração do ambiente e nas habilidades motoras orais, mas é fundamental investigar outros fatores também.
Também a fala pode ser afetada por uma gama de razões, como a falta de interação com outras crianças ou o excesso de exposição a estímulos digitais.
Por isso, é essencial que os profissionais de fonoaudiologia considerem todos esses aspectos no processo de avaliação. A escuta atenta e a observação do comportamento da criança nos diferentes contextos é o que realmente vai possibilitar a construção de um diagnóstico preciso.
Aprendizado constante
A experiência clínica me ensinou a importância de não antecipar diagnósticos. Cada criança tem sua individualidade, com seu ritmo, suas dificuldades e suas maneiras de se expressar no mundo. Aprendi que, ao observar mais atentamente, muitas vezes o que parecia ser um sinal claro de autismo era apenas a necessidade de mais atenção à previsibilidade, ao respeito pelo tempo da criança e ao ritmo mais tranquilo de interações.
Já acompanhei casos em que os sintomas iniciais indicavam autismo, mas ao longo das sessões, a criança foi respondendo positivamente a uma abordagem mais respeitosa, sem pressões externas. Ao ser acolhida adequadamente, a criança floresceu. E, no final das contas, o diagnóstico inicial foi desfeito, mas o cuidado continuou.
Deixar a pergunta aberta
Quando pais chegam angustiados porque ouviram que o filho “tem alguma coisa”, costumo responder com calma: “Vamos observar juntos. Vamos ver o que aparece no brincar, na escuta, no olhar da criança.” Às vezes, o que pode parecer uma hipersensibilidade é, na verdade, uma defesa contra um mundo que parece apressado demais para ela.
E, por vezes, o que parece ser autismo é uma sinalização de que ela precisa de mais presença, mais pausa, mais calma.
Por fim, em minha prática clínica, a dúvida precisa ser sustentada o tempo necessário para que possamos compreender verdadeiramente o que a criança tem a dizer, sem pressa de dar respostas imediatas. E, quando um diagnóstico for feito, que ele sirva para abrir caminhos, não para fechá-los.
FAQ sobre hipersensibilidade sensorial ou transtorno do espectro autista
Hipersensibilidade sensorial é a mesma coisa que autismo?
Não. Embora existam sintomas semelhantes, como aversão a sons e texturas, a hipersensibilidade sensorial e o transtorno do espectro autista são diagnósticos distintos com critérios próprios.
Uma criança com hipersensibilidade pode ter atraso na fala?
Sim. A hipersensibilidade pode afetar o envolvimento social e a exploração do ambiente, prejudicando, assim, o desenvolvimento da linguagem.
Quando procurar um fonoaudiólogo?
Sempre que houver dúvidas sobre a fala, linguagem, alimentação ou interação da criança. A avaliação precoce pode ajudar a identificar a origem das dificuldades.
O diagnóstico precoce é sempre o melhor caminho?
Nem sempre. O diagnóstico deve ser feito com cautela, após uma escuta cuidadosa. Por isso, o mais importante é observar o contexto e não apresar o diagnóstico.
O que observar no dia a dia da criança?
É importante observar como a criança brinca, como se comunica e como reage aos estímulos sensoriais, pois essas pistas são fundamentais para a construção de um diagnóstico mais preciso.
Rita Paula Cardoso
Fonoaudióloga clínica da infância, especializada no desenvolvimento da linguagem. No blog Fala Expressa aborda temas relacionados ao desenvolvimento da fala, linguagem, inclusão e bilinguismo.
Especialidades: Fonoaudiologia
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