Petit Lenormand e o Jogo da Esperança

A origem do Petit Lenormand reflete o encontro entre o acaso e o destino, transformando um jogo em um poderoso oráculo que atravessa os séculos.
Petit Lenormand e o Jogo da Esperança
Foto: Era Sideral / Direitos Reservados

Há, no jogo, um paradoxo intrínseco: ele é ao mesmo tempo passatempo e destino. Jogar é submeter-se ao acaso, mas também desafiar suas regras, como se a sorte fosse uma entidade que pode ser persuadida. Quando Johann Kaspar Hechtel desenhou o Das Spiel der Hoffnung, ou O Jogo da Esperança, em 1799, talvez ele não imaginasse que suas 36 cartas, adornadas com símbolos cotidianos, seriam muito mais do que um passatempo.

Johann Kaspar Hechtel, cidadão de Nuremberg,  era um homem de múltiplas ambições. Proprietário de uma empresa de metalurgia, autor de tratados científicos anônimos e criador de jogos de salão, transitava entre os ofícios práticos e os ideais elevados, entre o engenho das máquinas e a imaginação dos símbolos, e ele parecia movido por um desejo de ordem em um mundo de incertezas.

Hechtel era a personificação de uma era de contradições. Sua obra-prima, um jogo portátil composto por 36 cartas ilustradas, nasceu como uma ferramenta de entretenimento e pedagogia, mas acabou por ser adotada por “leitores do futuro” como um oráculo muito peculiar. O acaso e a sorte, que ele retratou tão bem em sua criação, parece ter governado também o destino de seu baralho.

Curioso notar como, no final do século XVIII, o baralho de Hechtel foi lançado em um contexto de inquietação social e intelectual. A Europa, sob a influência iluminista, oscilava entre a razão cartesiana e a resiliência do misticismo da renascença. Nesse cenário, não surpreende que um jogo de salão tenha ganhado vida nova como ferramenta de adivinhação. A transição, ao mesmo tempo fortuita e inevitável, talvez fosse menos sobre o jogo e mais sobre os tempos que o interpretaram.

Porém, a história desse baralho não pode ser contada sem uma personagem invisível que participou involuntariamente dessa história: Marie Anne Adelaide Lenormand. Embora nunca tenha tocado no baralho que hoje leva seu nome, foi sua reputação, construída nas ruas de Paris e nas cortes da Europa, que deu ao jogo a aura de mistério necessária para que ele cruzasse os séculos.

Mais que tabuleiros ou cartas para ler a sorte, estamos diante de uma confluência de vidas, simbolismos, acasos (ou destinos) e de estratégias de marketing, que originaram uma trama tão improvável quanto imprevisível.

Hechtel e o Jogo da Esperança

Sua criação, o Das Spiel der Hoffnung (O Jogo da Esperança) era, à primeira vista, apenas mais um jogo de tabuleiro, onde dados decidiam os movimentos das peças dos jogadores (como um jogo de ludo ou banco imobilíario).

Originalmente, o baralho trazia naipes franceses e alemães, além de ilustrações que dialogavam com a rotina das pessoas daquela época. Os jogadores lançavam dados e moviam suas peças por um tabuleiro improvisado de 6×6, onde cada carta, carregada de um significado único, trazia fortunas, perdas ou apenas estagnação para os jogadores.

As regras eram bem simples: ganhava-se ao atingir a Âncora, símbolo da esperança e da estabilidade. Porém, entre a primeira jogada e a última, as cartas testavam o jogador. A Montanha simboliza os obstáculos da vida; o Trevo, os lampejos de sorte, a Árvore, as benesses e a prosperidade. Em certos momentos, o movimento parecia depender apenas do acaso; em outros, do cálculo cuidadoso. Esse jogo de tensões refletia, de maneira singela, as dualidades da própria existência. Por trás da simplicidade aparente, Hechtel deixou o traço de uma profunda compreensão da natureza humana: avançar, retroceder, esperar – eis as três coreografias fundamentais da vida.

O que Hechtel talvez não pudesse prever é que seu jogo, criado como uma distração leve e pedagógica, seria reinterpretado como uma ferramenta oracular. Ao longo do século XIX, o Das Spiel der Hoffnung começou a ser usado como baralho de adivinhação, e seu formato foi associado ao nome de Marie-Anne Lenormand, a célebre cartomante francesa.

Lenormand, renomada por suas previsões, nunca viu ou usou o Das Spiel der Hoffnung. Ainda assim, o século XIX não se furtou a emprestar seu nome à criação de Hechtel, rebatizando-a de Petit Lenormand.

O artifício editorial, longe de ser uma fraude, foi antes uma adaptação cultural, como se o baralho tivesse sido jogado novamente, e, desta vez, a carta sorteada fosse a da fama, transformando-o em um dos sistemas de cartomancia mais populares do Ocidente.

Lenormand: A Sibila de Paris 

Enquanto Hechtel deixava o mundo em 1799, sua obra sobrevivia nas casas de Nuremberg. Na mesma época, Marie Anne Lenormand, uma jovem órfã criada por freiras beneditinas, iniciava sua ascensão na sociedade parisiense. Sua história, entrelaçada ao misticismo e à política, fez dela a cartomante mais célebre de sua geração.

Lenormand, embora não utilzasse o baralho que hoje carrega seu nome, não se limitava a uma única técnica oracular. Ela lia palmas de mãos, invocava o oculto por meio de numerologia e astrologia, e até interpretava o futuro em borras de café. A complexidade de suas práticas reflete tanto a riqueza de seu talento quanto o espírito de uma era em que as incertezas políticas encontravam consolo no sobrenatural.

Clientes ilustres, como a imperatriz Joséphine, Marat e Robespierre, buscaram seus conselhos, e diz-se que ela previu o apogeu e a queda de Napoleão. No entanto, como em todo mito, há exageros. Muito do que se atribui a Lenormand é parte da lenda fabricada em torno de seu nome, um esforço coletivo para manter viva sua popularidade e supostos feitos.

Após sua morte, em 1843, editores associaram o nome de Lenormand ao Das Spiel der Hoffnung, transformando-o no que se convencionou chamar de baralho Petit Lenormand. O marketing era claro: ao associar o produto à cartomante mais famosa da França, garantia-se sua aceitação. Assim, um jogo alemão encontrou um novo lar como oráculo francês.

De um jogo de salão a um oráculo popular

A história do Das Spiel der Hoffnung demonstra que um oráculo não exige crenças grandiosas ou sobrenaturais. Pelo contrário, é na simplicidade que um oráculo torna-se mais próximo da realidade concreta e objetiva do consulente em sua vida.

Não há necessidade de esoterismo pomposo e extraordinário para que algo seja especial; às vezes, basta um dado, um tabuleiro e a disposição de interpretar o que se vê. Como a própria vida, o jogo é uma combinação de acaso e escolhas, onde o progresso depende em alguma medida da sorte, mas, sobretudo, da inteligência.

A verdadeira força de um oráculo está na capacidade de refletir o que há de mais ordinário e universal: a incerteza. O tabuleiro, com suas casas numeradas e peças em movimento, lembra-nos que o avanço não é linear, que a vitória pode ser tão efêmera quanto a esperança que a precede.

Se Hechtel pretendia ensinar algo – e quem pode dizer o contrário? –, sua lição está menos nas regras do jogo e mais naquilo que não se explica. Entre o ato de lançar os dados despretensiosamente e a complexidade das escolhas humanas, há sempre um espaço para reflexão.

O jogo, afinal, é apenas uma metáfora; o que move a peça não é o número sorteado, mas a vontade de prosseguir. E, em tempos tão marcados pela pressa, não é pouco lembrar que até o acaso tem seu ritmo.

Assim, o Das Spiel der Hoffnung sobrevive, não como relíquia, mas como apelo muito atual aos jogadores, aos intérpretes, aos inquietos. Jogar é mais do que vencer; é aceitar o jogo como parte da vida. A esperança, em última análise, não está na âncora do final, mas no movimento que ela inspira.

Hechtel e Lenormand, onde os destinos se encontram

Se Hechtel soubesse o quanto sua criação excederia seu propósito original, talvez tivesse escolhido outro nome. Mas a esperança, com sua promessa de superação e realização, continua a ser a melhor imagem para o que somos: jogadores que, movidos por incertezas, perseguem incessantemente o futuro que sonhamos alcançar.

Os símbolos, outrora peças de um tabuleiro, agora Petit lenormand, não possui apenas o caráter fortuito do jogo, mas sim, uma carga simbólica densa e direta, capaz de se conectar aos dilemas correntes dos consulentes, ensinando que o destino não se encontra no sobrenatural ou em pretensas teorias herméticas, ocultas ou mágicas e sim, nos acontecimentos mais corriqueiros do nosso dia a dia.

Hoje, tanto o Das Spiel der Hoffnung quanto o Petit Lenormand sobrevivem, graças a exemplares do jogo original em museus ao redor do mundo, como por meio do baralho Lenormand que é utilizado por cartomantes no mundo inteiro e que, muitas vezes, talvez até desconheçam essa origem histórica.

Contudo, o mais importante, é o que perdura: o diálogo entre o lúdico e o real, entre o acaso e o destino.

A história de Hechtel e Lenormand e da origem do Petit Lenormand testemunha sua própria essência: um movimento entre casas, onde cada passo apresenta algo novo. Hechtel e Lenormand, embora separados pelo tempo e pela geografia, tornaram-se peças de um mesmo jogo, que ensinam que a esperança é o que sempre nos impulsiona a seguir em frente.

E assim, entre dados lançados e cartas dispostas, o jogo continua…

Mântica Rhom

A sabedoria ancestral e o misticismo da cultura cigana em consultas que promovem o autoconhecimento e orientação espiritual através da cartomancia tradicional, do tarô e do baralho cigano.

Especialidades: Aromaterapia, Astrologia, Baralho Cigano, Fitoterapia, Florais, Numerologia, Radiestesia, Tarot

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